domingo, 5 de março de 2023

Ángel González

5 dos últimos poemas



Sempre a esperança


Esperar a desgraça
é uma forma de esperança?
Para todos os efeitos, a menos perigosa.
Aquela que nunca nos pode defraudar.


***


Leio poemas


Leio poemas ao calhas,
leio quase sem pensar no que leio.
Quando me encontro com um verso triste
sinto uma espécie de carícia na alma.
Não é que a tristeza alheia me alivie;
acontece que me sinto menos só.


***


Tem de se ser muito corajoso


Tem de se ser muito corajoso para se viver com medo.
Ao contrário do que se julga habitualmente,
o medo nem sempre é um assunto de cobardes.
Para viver morto de medo
é preciso ter, de facto, muito valor.


***


Nem só o poeta é um fingidor


Eu sou um fingidor; eu, não o poeta.
Agora fala o homem:
Sim, sou um fingidor.
Observem o meu sorriso.


***


O poema dos 82 anos


Passou quase um século.
Sou um cavalheiro muito antigo.
Ou melhor,
o que subsiste de um cavalheiro:
uns restos 
desbotados,
algum gesto
que pretende ser cortês.
É pouco, mas é alguma coisa.

Dizem que águas passadas
não movem moinhos.
Mas o rio da vida
que passou
continua a moer-me vivo,
reduzindo-me a pó
apaixonado
pela água,
por aquela água
cujo murmúrio distante
o meu coração ainda escuta.



(Fonte: Nada grave, Visor, Madrid, 2008).