Indesejável
Não me deixa passar o guarda.
Ultrapassei o limite de idade.
Provenho de um país que já não existe.
Os meus papéis não estão em ordem.
Falta-me um carimbo.
Preciso de outra assinatura.
Não falo a língua.
Não tenho conta no banco.
Reprovei no exame de admissão.
Extinguiram o meu posto na fábrica imensa.
Desempregaram-me hoje e para sempre.
Não tenho nenhuma cunha.
Levo aqui deste mundo vasto tempo.
E os nossos amos dizem que já é hora
de me calar e de me fundir com o lixo.
(versão minha)
sexta-feira, 28 de março de 2008
quarta-feira, 26 de março de 2008
Bill Knott
Poema
Queridos rapazes e raparigas,
não se esqueçam por favor
de sublinhar as minhas palavras
depois de as apagarem.
****
Na encruzilhada
O vento traz uma folha de papel até aos meus pés.
Apanho-a.
Não é uma petição para a minha morte.
****
Errado
Quero ser mal interpretado;
isto é,
interpretado a partir da tua perspectiva.
****
O que eu disse
O humor foi banido do céu das hienas.
****
Poema putativo da época samurai
ele escreveu um haiku
antes da sua lâmina cortar a minha cabeça
por que não um tanka
um tanka permitir-me-ia viver
por mais catorze sílabas.
(versões minhas)
Queridos rapazes e raparigas,
não se esqueçam por favor
de sublinhar as minhas palavras
depois de as apagarem.
****
Na encruzilhada
O vento traz uma folha de papel até aos meus pés.
Apanho-a.
Não é uma petição para a minha morte.
****
Errado
Quero ser mal interpretado;
isto é,
interpretado a partir da tua perspectiva.
****
O que eu disse
O humor foi banido do céu das hienas.
****
Poema putativo da época samurai
ele escreveu um haiku
antes da sua lâmina cortar a minha cabeça
por que não um tanka
um tanka permitir-me-ia viver
por mais catorze sílabas.
(versões minhas)
domingo, 23 de março de 2008
Javier Salvago
Retrato
Fala pouco, e a muito poucos
se atreve a chamar amigos,
passa ao largo se há confusão,
não visita os seus vizinhos,
atravessa a rua fumando,
sempre dentro de si mesmo,
vendo o mundo de fora
como quem lê um livro
preso - sem saída -
no seu próprio labirinto,
no entanto nem surdo nem cego
nem indiferente nem frio:
um solitário que vive
com uma mulher e um miúdo.
(versão minha)
Fala pouco, e a muito poucos
se atreve a chamar amigos,
passa ao largo se há confusão,
não visita os seus vizinhos,
atravessa a rua fumando,
sempre dentro de si mesmo,
vendo o mundo de fora
como quem lê um livro
preso - sem saída -
no seu próprio labirinto,
no entanto nem surdo nem cego
nem indiferente nem frio:
um solitário que vive
com uma mulher e um miúdo.
(versão minha)
sábado, 22 de março de 2008
Javier Salvago
Convém não esquecer
Por este atalho,
a que chamam vida, todos
vamos às apalpadelas
tal como um cego.
Em cinza terminam
todos os fogos.
****
Haiku
Como as nuvens de agosto, tudo passa.
A vida prova-nos
que se pode viver sem quase tudo.
(versões minhas)
Por este atalho,
a que chamam vida, todos
vamos às apalpadelas
tal como um cego.
Em cinza terminam
todos os fogos.
****
Haiku
Como as nuvens de agosto, tudo passa.
A vida prova-nos
que se pode viver sem quase tudo.
(versões minhas)
sexta-feira, 21 de março de 2008
Javier Salvago
A juventude
Durou o que duram,
por norma, as ilusões:
até que descobres
que já acordaste.
Hoje é só história
para constituir memória.
Outros são os seus donos
e outro é aquele que olha
e procura o que de novo
oferece a vida.
Quem veio por tudo
não se satisfaz com tão pouco.
(versão minha)
Durou o que duram,
por norma, as ilusões:
até que descobres
que já acordaste.
Hoje é só história
para constituir memória.
Outros são os seus donos
e outro é aquele que olha
e procura o que de novo
oferece a vida.
Quem veio por tudo
não se satisfaz com tão pouco.
(versão minha)
quinta-feira, 20 de março de 2008
Javier Salvago
Quinta-feira Santa
A mesma lua, o mesmo
perfume de laranjeira
perfumando as ruas,
onde a vida estala
na multidão de corpos
que se atraem e procuram.
Calor de primavera
na pele e no ar.
Jovens incansáveis,
como nós então,
percorrem a cidade
bêbedos de desejo
- jovens com invernos
de abstinência, que sentem,
como Aquele, que também
o seu reino não é deste mundo -.
Os tambores recordam
que se avança para o patíbulo.
Diante de virgens chorosas,
descaradamente, beijam-se
deuses que morrerão
- como o deus que ontem fomos -,
sem remédio nem culpa,
na cruz dos anos.
(in Los mejores años, 1991; versão minha)
A mesma lua, o mesmo
perfume de laranjeira
perfumando as ruas,
onde a vida estala
na multidão de corpos
que se atraem e procuram.
Calor de primavera
na pele e no ar.
Jovens incansáveis,
como nós então,
percorrem a cidade
bêbedos de desejo
- jovens com invernos
de abstinência, que sentem,
como Aquele, que também
o seu reino não é deste mundo -.
Os tambores recordam
que se avança para o patíbulo.
Diante de virgens chorosas,
descaradamente, beijam-se
deuses que morrerão
- como o deus que ontem fomos -,
sem remédio nem culpa,
na cruz dos anos.
(in Los mejores años, 1991; versão minha)
quarta-feira, 19 de março de 2008
Adam Zagajewski
Não permitas que o momento de lucidez se dissolva
Não permitas que o momento de lucidez se dissolva
Deixa que o pensamento radiante dure em sossego
embora a página esteja quase concluída e a chama vacile
Ainda não ascendemos ao nível que nos é devido
A sabedoria cresce lentamente como um dente do siso
A estatura de um homem continua a ser talhada
sobre uma porta branca
Vinda da distância, a voz feliz de uma trompete
e de uma canção surge inesperadamente como um gato
O que acontece não cai no vazio
O fogueiro continua a alimentar a fornalha com carvão
Não permitas que o momento de lucidez se dissolva
Tens de gravar a verdade
numa substância seca e dura
(versão minha a partir da tradução para inglês de Renata Gorczynski)
Não permitas que o momento de lucidez se dissolva
Deixa que o pensamento radiante dure em sossego
embora a página esteja quase concluída e a chama vacile
Ainda não ascendemos ao nível que nos é devido
A sabedoria cresce lentamente como um dente do siso
A estatura de um homem continua a ser talhada
sobre uma porta branca
Vinda da distância, a voz feliz de uma trompete
e de uma canção surge inesperadamente como um gato
O que acontece não cai no vazio
O fogueiro continua a alimentar a fornalha com carvão
Não permitas que o momento de lucidez se dissolva
Tens de gravar a verdade
numa substância seca e dura
(versão minha a partir da tradução para inglês de Renata Gorczynski)
terça-feira, 18 de março de 2008
Juan Gelman
O jogo em que andamos
Se me dessem a escolher, escolheria
esta saúde de saber que estamos doentes,
esta felicidade de andarmos tão infelizes.
Se me dessem a escolher, escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que passo por impuro.
Se me dessem a escolher, escolheria
este amor com que odeio,
esta esperança que come pães desesperados.
Aqui acontece, senhores,
que jogo com a morte.
(versão minha)
Se me dessem a escolher, escolheria
esta saúde de saber que estamos doentes,
esta felicidade de andarmos tão infelizes.
Se me dessem a escolher, escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que passo por impuro.
Se me dessem a escolher, escolheria
este amor com que odeio,
esta esperança que come pães desesperados.
Aqui acontece, senhores,
que jogo com a morte.
(versão minha)
sábado, 15 de março de 2008
Richard Aronowitz
Anatomia de um mentiroso
Deslizar debaixo deste céu infinito,
cavalgar a rede das minhas artérias,
percorrer os caminhos do meu pecado.
Poderia contar-te histórias sobre
a atracção, tubos capilares e por aí fora,
tecer grandes narrativas a partir dos ramos dos meus brônquios,
guiar-te pelos quatro cantos dos meus olhos.
Poderia conceber mil papeis diferentes,
enganar-te com a contagem das minhas borbulhas
só para confirmar que de facto ainda estou vivo.
Talvez componha algo simples para ti,
tão fácil como admitir uma mentira.
Agora, retrocedendo lentamente a partir de cem,
abre-me como se fosse uma rosa. Rejeita
o meu coração e deixa os meus pulmões inchados,
eles enganam-te a toda a hora. Não aceites
que a minha língua ou a garganta te desviem.
Terás que me cortar em carne viva,
até às pontas dos dedos por um verso que seja verdadeiro.
O resto é apenas entretenimento, um logro feito carne.
(versão minha; in Anvil new poets, Anvil, London, 2001, p. 18)
Deslizar debaixo deste céu infinito,
cavalgar a rede das minhas artérias,
percorrer os caminhos do meu pecado.
Poderia contar-te histórias sobre
a atracção, tubos capilares e por aí fora,
tecer grandes narrativas a partir dos ramos dos meus brônquios,
guiar-te pelos quatro cantos dos meus olhos.
Poderia conceber mil papeis diferentes,
enganar-te com a contagem das minhas borbulhas
só para confirmar que de facto ainda estou vivo.
Talvez componha algo simples para ti,
tão fácil como admitir uma mentira.
Agora, retrocedendo lentamente a partir de cem,
abre-me como se fosse uma rosa. Rejeita
o meu coração e deixa os meus pulmões inchados,
eles enganam-te a toda a hora. Não aceites
que a minha língua ou a garganta te desviem.
Terás que me cortar em carne viva,
até às pontas dos dedos por um verso que seja verdadeiro.
O resto é apenas entretenimento, um logro feito carne.
(versão minha; in Anvil new poets, Anvil, London, 2001, p. 18)
terça-feira, 11 de março de 2008
Tony Harrison
Longa distância II
Apesar da minha mãe já ter morrido há dois anos
o meu pai continua a colocar as suas pantufas junto do aquecedor,
põe botijas de água quente no seu lado vazio da cama
e continua a ir renovar-lhe o passe social.
Não podíamos aparecer de repente. Tínhamos de telefonar.
Durante uma hora mantinha-nos à distância para ter tempo
de esconder as coisas dela e parecer um homem só
como se o seu amor puro e silencioso fosse um crime.
Ele não podia expor-se à minha má influência de descrente
embora estivesse certo de que em breve iria ouvir a chave dela
a ranger na fechadura enferrujada e a encerrar o sofrimento dele.
Sabia que ela tinha saído precipitadamente para arranjar chá.
Eu creio que a vida termina com a morte, e é tudo.
Não fomos juntos às compras; tanto faz,
na minha agenda preta de cabedal aparece o teu nome
e o número que já ninguém atende e para o qual continuo a ligar.
(versão minha)
Apesar da minha mãe já ter morrido há dois anos
o meu pai continua a colocar as suas pantufas junto do aquecedor,
põe botijas de água quente no seu lado vazio da cama
e continua a ir renovar-lhe o passe social.
Não podíamos aparecer de repente. Tínhamos de telefonar.
Durante uma hora mantinha-nos à distância para ter tempo
de esconder as coisas dela e parecer um homem só
como se o seu amor puro e silencioso fosse um crime.
Ele não podia expor-se à minha má influência de descrente
embora estivesse certo de que em breve iria ouvir a chave dela
a ranger na fechadura enferrujada e a encerrar o sofrimento dele.
Sabia que ela tinha saído precipitadamente para arranjar chá.
Eu creio que a vida termina com a morte, e é tudo.
Não fomos juntos às compras; tanto faz,
na minha agenda preta de cabedal aparece o teu nome
e o número que já ninguém atende e para o qual continuo a ligar.
(versão minha)
segunda-feira, 10 de março de 2008
Ferran Fernández
Mandamento
Ama-me sobre todas as coisas
por exemplo
sobre a carpete
sobre a mesa
sobre a areia da praia
(versão minha)
Ama-me sobre todas as coisas
por exemplo
sobre a carpete
sobre a mesa
sobre a areia da praia
(versão minha)
quinta-feira, 6 de março de 2008
Peter Cherches
Levanta o teu braço direito
Levanta o teu braço direito, disse ela.
Levantei o meu braço direito.
Levanta o teu braço esquerdo, disse ela.
Levantei o meu braço esquerdo. Os meus dois braços estavam levantados.
Baixa o teu braço direito, disse ela.
Baixei-o.
Baixa o teu braço esquerdo, disse ela.
Fi-lo.
Levanta o teu braço direito, disse ela.
Obedeci.
Baixa o teu braço direito.
Assim fiz.
Levanta o teu braço esquerdo.
Levantei-o.
Baixa o teu braço esquerdo.
Assim fiz.
Silêncio. Ali fiquei, os dois braços em baixo, esperando pela sua próxima ordem. Passado um bocado fiquei impaciente e disse, e agora.
Agora é a tua vez de dar as ordens, disse ela.
Está bem, disse eu. Diz-me para levantar o meu braço direito.
(versão minha)