segunda-feira, 20 de abril de 2020

Barry Gifford

Final de setembro em Toronto e o tempo ainda está bom



Adoro estas
           miúdas
           orgulhosas
      dos
           seus seios
Quando passamos
                 na rua
             confessam
                       tudo
           sabendo como
                    é fácil
            para mim
                     perdoar-
                         -lhes



(Versão minha, a partir do original e da tradução de Blanca Tortajada, incluídos em Back in America, Renacimiento, Sevilha, edição bilingue,, 2011, p. 67.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Pedro Sevilla

Burros na Medina de Fez



Quando pensava que já não voltaria a ver-vos,
que seríeis somente uma paisagem remota da infância,
haveis regressado aos meus olhos, sensatos carregadores
dum mundo fabuloso que pensava extinto.
Burros meus, confrades, sábios de olhos escuros,
julgava-vos mortos e era eu que faltava,
eu que, nos braços do tempo, saí do eterno.

Na velha Medina de uma cidade de um dia
voltei a ser o menino solitário de então,
que vos olhava com lágrimas vendo os vossos joelhos
dobrarem-se sob o peso de duras cargas.

Brutos irmãos meus, inocentes burricos,
hoje vi de novo o almocreve ruço
com o seu pregão cansado de cal branca,
o padeiro alegre e a sua burrinha elegante,
a dos laçarotes vermelhos gingando à sua frente
enquanto deixava um rasto de cheiro a pão e a mãe.

Nem sequer senti medo quando vos vi
carregados de peles mortas para os curtidores,
porque já sei de um sítio onde posso esconder-me
e ser, como vós, inocente de novo.



(Versão minha; Para cuando volvamos (Poesía completa, 1992-2018); Renacimiento, Sevilla, 2018, p. 149).

domingo, 12 de abril de 2020

Pedro Sevilla

Para José Mateos



Uma imagem antiga, da minha infância,
acompanha-me sempre como um símbolo
da amizade: o meu avô, numa feira
de São Miguel, bêbedo e abraçado a outro velho,
chora feliz, ri-se e pede mais meia garrafa.
Com os abraços, com a bebedeira,
têm os fatos sujos e as boinas torcidas,
as botas enlameadas por causa
da primeira chuva de setembro.

Esta imagem, José, não é nada edificante,
no entanto sempre que penso
neste sentimento que nos une,
diferente das tristes
misérias do amor e das suas crueldades,
recrio na minha memória aqueles velhos
aturdidos de vinho e de alegria
- há charcos de água azul
no barro pisado pelos animais -:
a amizade é um par homens
que volta da feira, ou da vida
(que volta da feira que é a vida),
irmanados, rindo-se, chorando
com os braços ao ombro
e os fatos sujos.



(Versão minha; poema incluído em Para cuando volvamos (Poesía completa, 1992-2018), Renacimiento, Sevilha, 2018, p. 112).

sábado, 11 de abril de 2020

Pedro Sevilla

Propósito



Portar-me, perante a dor, como essa amendoeira
que, ferida pelo machado, sente cair os ramos,
aos quais não voltarão mais os gorjeios.

Ser, como ela, taça de luz,
espera fecunda,
paciência milenar
que sabe que o sol de março há-de regressar
e florir-lhe a alma,
e encher de perfume as suas feridas.



(Versão minha; poema incluído em Para cuando volvamos (Poesía completa, 1992-2018); Renacimiento, Sevilha, 2018, p. 156).

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Barry Gifford

O dia em que morreu Allen Ginsberg



Levantei-me cedo
olhei pela janela
as mercadorias que cruzavam
o Hudson
o sol a aparecer
recalcitrante, um dia mais frio
que o esperado
Na noite anterior ouvira dizer
que o Allen estava doente, moribundo
davam-lhe só uns
poucos meses de vida
Era estranho estar
em Nova Iorque, a sua cidade
no momento
da sua desaparição
O jornal dizia
que ele tinha terminado
recentemente
um livro novo chamado
Morte e fama
Esta tarde visitei
um dos meus melhores
e mais antigos amigos
que há poucos dias
me dissera que
não se esperava que o seu pai
vivesse mais do que
duas semanas
O pai do meu amigo era
um tipo duro
sempre gostei dele
um tipo da classe operária
de Chicago
onde ainda vivia
O filho telefonou-lhe
quando eu estava
com ele
e passou-me o telefone
O velho parecia
tão rijo como sempre
- era difícil acreditar
que ele partiria
em breve
Ao falar comigo
tratou-me por um nome
da minha infância
e de repente
fui-me abaixo
Não há maneira de impedir
isto,
pensei.
Agora Allen G. morreu
e foi saudar
o Jack e o Neal
quase trinta anos depois
Imagino o Jack
no céu budista
a dizer, Obrigado
por vires, Al
Esta manhã é o seu funeral
decidi não ir
imagino que haverá
uma multidão
e eu não gosto de funerais
de qualquer modo
qual é a ideia
Às nove da manhã
quando está agendado o início
da cerimónia budista
uma cerimónia de quatro horas
que culmina com a cremação
a campainha toca
Tenho uma visão de Allen
de pé à porta
a dizer, Eu não morri,
mas não quero perder
isto. Vem comigo!
Mas em vez dele
é o canalizador
Conheci o Allen
há trinta e um anos
em Londres
Tinha lá ido com o seu
pai Louis para fazer
um recital de poesia
Alguns anos depois
trabalhámos juntos
organizando um livro
de cartas suas e do Neal
Vi-o a última vez
faz agora dois anos
em Paris
Encontrámo-nos na
rua de Sèvres
mostrou-me uma medalha
que o ministro francês
da Cultura
lhe tinha concedido
Disse-me
que eu estava com muito bom ar
deu-me beijos húmidos
nas bochechas
Allen escreveu
Que a morte sustenha os seus fantasmas!
e ele chegou
aos setenta anos
Ele e Kerouac
foram duas
das minhas maiores inspirações
quando eu era puto
Deram-me a esperança
de que a beleza e o sentido
podiam ser encontrados
no meio do caos
Disse-lho uma vez
e o Allen respondeu
Mantém essa esperança!
Ao caminharmos juntos
num trilho do kitkidizze
do Gary Snyder em 1976
demos com
um monte de cinzas
e contornámo-lo com cuidado
As cinzas de Allen
serão enterradas
ao pé do túmulo de Louis
Na morte regressamos
ao pai
Adeus, Allen
agora estás
com os fantasmas.



(Versão minha a partir do original e da tradução espanhola de Blanca Tortajada reproduzidos em Back in America, Renacimiento, Sevilha, edição bilingue, 2011, p. 25-33).


quinta-feira, 9 de abril de 2020

Barry Gifford

Poema



Que o pensamento
      de ficar sem ti
           me passe pela cabeça
       deixa-me passado
Nunca me preocupei
           com ninguém
      assim até agora
              nunca pensei
      que poderia cometer
              tamanho erro
                apaixonar-me
       pela verdadeira rapariga
           dos meus sonhos
Agora é demasiado tarde
       o caçador foi apanhado
            na armadilha
       Dormes
            com a minha alma
                 na tua boca
       Quando nos beijamos
                  consigo sentir-lhe o sabor



(Versão minha a partir do original e da tradução espanhola de Blanca Tortajada reproduzidos em Back in America, Renacimiento, Sevilha, edição bilingue, 2011, p. 83).

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Barry Gifford

O meu último soneto



Não sei se te lembras de mim,
sou o rapaz com quem dançaste
naquele piquenique comunista em Albarese
Estávamos tão apaixonados que não nos importámos nada
com a música foleira, nem com o tempo ou a roupa colada
aos nossos corpos pelo suor enquanto girávamos
Os teus irmãos, as suas mulheres e filhos
pareciam extasiados connosco, com o modo como dançávamos,
como éramos felizes -
O que aconteceu, meu amor?
Como nos despenhámos?
Sinto-me como Ícaro, sem asas
afundando-se no mar debaixo do peso terrível
do coração do seu pai



(Versão minha a partir do original e da tradução de Blanca Tortajada reproduzidos em Back in America, Renacimiento, Sevilha, edição bilingue, 2011, p. 89).