sábado, 29 de novembro de 2008

Fernando López de Artieta

As quatro estações



O outono e as suas ruas
douradas pelas folhas dos livros.

O inverno de neve
igual a um longo e triste hendecassílabo.

Depois a primavera enamorada
lendo algum poema de Vírgílio.

Logo chega o verão e, como sempre,
mandamos para o caralho os versinhos.



(versão minha; poema do livro Jugar en serio, Visor Libros, Madrid, 2004, p. 63).

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Fernando López de Artieta

Ode ao telefone



Todos nós compramos este aparelho
com a ilusão de que nos ligue um dia
uma loira que deseje ser nossa amiga
ou nos anunciem um prémio literário.

Esta loquaz pomba mensageira
devia ensinar ao carteiro
que as notícias não requerem selos,
nem caixa de correio, nem farda, nem uma Vespa.

Assalta-nos de súbito, a voz estridente,
com notícias triviais e prosaicas,
temas domésticos de andar por casa,
sem importância, porém com sentido.

A nossa vida esconde-se nestas coisas
que fazemos quase sem saber que fazemos,
e assim tagarelar com alguém ao telefone
representa-nos de não sei que forma.

Nenhum amigo me contou tantos
segredos ao ouvido como este,
e jamais me falaram as mulheres
acercando-se tanto dos meus lábios.

E não quero louvar no meu poema
o artefacto, antes o grande mistério
desses números mágicos que deixam
que apareça uma voz no meu silêncio.



(versão minha; poema do livro Jugar en serio, Visor Libros, Madrid, 2004, p. 19).

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

América 2008 (4)


(Train by the road - foto: jpb)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Ernest Hemingway

O tempo exigiu



O tempo exigiu que cantássemos
E arrancou-nos a língua.

O tempo exigiu que fluíssemos
E cravou-nos uma rolha.

O tempo exigiu que dançássemos
E vestiu-nos uma calças de ferro.

E no fim o tempo recebeu em troca
Toda a quantidade de merda que exigiu.



(versão minha; original reproduzido em Illinois Voices, organização e selecção de Kevin Stein e G.E. Murray, University of Illinois Press, Urbana and Chicago, 2001, p. 26).

domingo, 23 de novembro de 2008

América 2008 (3)

(Near Route 66, Illinois - foto: jpb)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Elaine Equi

Coisas a fazer segundo a Bíblia



Embebedar-se.
Caminhar sobre as águas.
Coleccionar circuncisões.
Arrancar um olho.

Construir uma arca.
Interpretar sonhos.
Matar um irmão.
Não olhar para trás.

Juntar-se a uma tribo.
Ouvir as nuvens.
Viver numa tenda.
Deixar o trabalho.

Falar com as montanhas.
Apresentar-se perante um rei.
Ressuscitar os mortos.
Procurar o espírito.

Colher o que se semeou.
Somar bem-aventuranças.
Ranger os dentes.
Pescar para os homens.

Deixar crescer a barba.
Usar o hábito.
Montar um burro.
Transportar uma tocha.

Sentar-se junto a uma nascente.
Viver para chegar a velho.
Permanecer virgem
e falar em línguas.

Estas são as palavras do Senhor.



(versão minha; original em Illinois Voices, organização e selecção de Kevin Stein e G.E. Murray, University of Illinois Press, Urbana and Chicago, 2001, pp. 272-273).

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

América 2008 (2)


(Paris, Texas - foto: jpb)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Harriet Monroe

O encontro



A parelha de bois e o automóvel
Ficaram frente a frente na extensa estrada incandescente.
A extensa estrada incandescente estreitava
Na curva da colina,
E lá em baixo estava o rio dançante e solar
Espumando sobre as rochas.

Os animais brandos e pacíficos deixaram-se ficar calmamente, ruminando o seu alimento.
O homem hirsuto e barbudo das montanhas,
Mais enferrujado que a sua carroça,
Não tirou os olhos do motorista orgulhoso.
A pequena rapariga esfarrapada
De cabelo corado pelo sol,
Sentada numa mochila dura, amarela e empoeirada
Olhou para os elegantes chapéus de viagem das senhoras,
E para os seus lenços de chifon
Que a leve brisa dedilhava.
O motorista orgulhoso encheu de ar a buzina,
Mas nada se moveu -
Excepto o espumante rio dançante e solar lá em baixo.

Então ele meneou a cabeça,
E virou o volante.
E lentamente, cuidadosamente,
O automóvel fez marcha-atrás na extensa estrada incandescente.

E os animais brandos e pacíficos levantaram os cascos,
E o homem hirsuto e barbudo agitou as suas rédeas,
E a esfarrapada pequena rapariga lançou o olhar para além da colina.
E a parelha de bois arrastou-se e balanceou-se pela extensa estrada incandescente.



(versão minha; original reproduzido em Illinois Voices - an anthology of twentieth-century poetry, organização e selecção de Kevin Stein e G. E. Murray, University of Illinois Press, Urbana and Chicago, 2001, p. 1).

sábado, 15 de novembro de 2008

América 2008 (1)

(Illinois - foto: jpb)

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Günter Eich

Irmãos Grimm



Bosque de urtigas.
As crianças calcinadas
esperam por detrás das janelas da cave.
Os pais sairam
dizendo que voltariam em breve.

Primeiro chegou o lobo
conduzindo um cilindro,
a hiena quis pedir emprestada uma forquilha,
o escorpião veio pelo guia da TV.

Sem chamas
o bosque de urtigas arde por fora.
Os pais
sairam há muito tempo.



(versão minha a partir da tradução do alemão para o inglês de Michael Hofmann, reproduzida em The Faber Book of 20th-Century German Poems, selecção e introdução de Michael Hofmann, Faber and Faber, London, 2005, pp. 89-90).

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Dick Allen

O acompanhante



Sempre me preocupei contigo - o homem ou a mulher
sentados ao piano,
noite após noite recebendo apenas alguns aplausos
consentidos pelo cantor: uma salva de palmas, por favor,
para o meu acompanhante. Nos concertos,
enquanto vejo os teus dedos sobre as teclas,
e com que rapidez, com que excelência
mudas as páginas da pauta,
segues as notas do cantor, cobres as fífias do cantor,
preocupo-me com todas as vidas,
a maior parte das vidas
vividas na sombra de alguma celebridade impositiva;
mas depois a voz do cantor morre
e passam a existir apenas as tuas últimas notas ao piano,
de modo nenhum ressentidas,
encaminhando-nos para o fim, para essa sincera alegria
que brota em pequenas quantidades de uma audiência comovida
como súbitas flores silvestres oscilando sob uma chuva
de fortes aplausos. E eu ergo-me também,
aplaudindo o cantor, é certo, mas
julgo que aclamando-te também a ti
meio virado para nós, em equilíbrio no teu banco preto,
modesto, perfeitamente ensaiado,
continuando a tocar a parte que tornaste tua.



(versão minha; original aqui).

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Rainer Brambach

Manhã



Todos os dias o homem do leite vem às seis
Um pouco depois das sete a senhora do jornal surge coxeando
Às oito começo eu a andar em torno
Da mesa onde ainda estão a garrafa de vinho
da última noite e o copo, vazios.
E também aí permanecem as cartas
todas elas sinceramente minhas -
Levanta-te, dá umas voltas, lê
o Eclesiastes, onze
a luz é verdadeiramente doce
e uma coisa agradável para os olhos é contemplar o sol...



(versão minha da tradução do alemão para o inglês de Michael Hofmann reproduzida em The Faber Book of 20th-Century German Poems, selecção e introdução de Michael Hofmann, Faber and Faber, London, 2005, p. 98).

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Rainer Brambach

Homens solteiros



Um colecciona pedras.
Outro adquire selos.
Um terceiro joga xadrez pelo correio
e outro aguarda e fica noites à espreita no parque.
Um estuda russo.
Outro lê Shakespeare.
Um escreve uma carta a seguir a outra,
e outro bebe vinho à noite,
doutro modo não haveria nada a referir.
Bebem, lêem, espreitam, adquirem,
estes homens sós nas suas noites.
Escrevem, estudam, jogam, coleccionam,
cada um por si depois de um dia de trabalho.
Um frequenta a opereta.
Outro ouve Bach.
Um guarda um segredo.
Como um cão preso a uma corrente,
corre pelas avenidas abaixo, noite após noite.



(versão minha a partir da tradução do alemão para o inglês de Michael Hofmann, reproduzida em The Faber Book of 20th-Century German Poems, selecção e introdução de Michael Hofmann, Faber and Faber, London, 2005, pp. 98-99)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Friederike Mayröcker

Ostia receber-te-á



Eu estarei em Ostia
Estarei à tua espera
Estarei lá para te abraçar
Hei-de dar-te mãos em Ostia
Estarei lá
em Ostia
na foz do Tibre
esse rio ancestral

Eu não estarei em Ostia
Não estarei lá à tua espera
Não estarei lá para te abraçar
Não te darei as mãos em Ostia
Não estarei lá
em Ostia
na foz desse rio ancestral
o Tibre



(versão minha a partir da tradução inglesa de Reinhold Grimm reproduzida em The Faber Book of 20-th Century German Poems, organização e introdução de Michael Hofmann, Faber and Faber, London, 2005, p.109).

domingo, 2 de novembro de 2008

Robert Walser

O meu quinquagésimo aniversário



Nasci em Abril numa pequena cidade
Cujos arredores são encantadores, e onde
Frequentei a escola; o vigário e o mestre-escola
Ficaram em parte satisfeitos comigo. Na devida altura
Fui simpaticamente integrado num banco a fim de aprender
O ofício devido ao qual depois visitei cidades como Basileia,
Estugarda e Zurique. Aí tomei conhecimento
Com a mais generosa e amável das mulheres
Que ora vivia na cidade, ora no campo,
Segundo o que lhe era mais conveniente,
E que conduziu a minha atenção para
Heinrich Heine, alguém que apenas pude
Apreciar completamente muito mais tarde.
O nome desta mulher somente por mim
Pode ser divulgado: mas por que deveria fazê-lo
Quando a discrição me faz feliz? Cargos importantes
Nos negócios desempenhei uma quantidade deles.
Com alacridade, por causa de um impulso
Só meu, abandonei um de modo a poder ter
E satisfazer outro; entretanto,
No sector industrial, escrevi poemas que apareceram
Mais tarde, talvez de maneira demasiadamente pródiga,
Na casa editora de Bruno Cassirer.
Por um período de mais ou menos sete anos vivi depois
Em Berlim, escrevendo prosa arduamente.
Mas quando, de forma cavalheiresca, os editores deixaram
De ter vontade de me conceder um adiantamento, regressei
À Suiça, que muitos amam
Pelas suas belas montanhas, para aqui
Persistir, sem mágoa, nas minhas tentativas poéticas.
E agora, a julgar por uns quantos cabelos grisalhos,
Cheguei à idade de cinquenta anos.




(versão minha a partir da tradução do alemão para o inglês de Michael Hamburguer, reproduzida em German Poetry: 1910-1975, antologia organizada e traduzida por Michael Hamburguer, Carcanet, Manchester, 1977, p. 27).