quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Juan de Lapala

Vincent



Cegam-me os teus sóis
e os teus lúcidos amarelos.
Sossegam-me a alma
as aspas "deste ninguém".
Toco por baixo da ligadura
dos teus óleos
esses ausentes recessos
que fizeste símbolo da tua dor.
Pesou demasiado a tua cruz, homem,
e sei que caíste três vezes
antes de te amputares por inteiro.
Ainda te observamos cabisbaixos,
eu e os teus tristes girassóis.



(Versão de Ricardo Castro Ferreira; o original - do livro El torturador, de 2005 - pode ser lido aqui).

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Cristina Morano

A herança


A Tomasa Meco, in memorian



A minha mãe ensinou-me a bordar:
o dedal no dedo médio,
usar o fio em pequenas meadas,
ensinou-me a fazer o ponto de bainha dupla
e a dispor a loiça de porcelana:
primeiro as bandejas,
depois os pratos e os copos.
A minha avó ensinou-me a engomar:
o lenço de criança dobrava-se
num triângulo, como o de solteira,
só o de cavalheiro se dobrava
em forma de rectângulo.

- Então és filha de boas famílias.
- Não, sou a filha das criadas.



(Versão minha; original reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generación blogger, selecção de David González; prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby, Madrid, 2010, p. 211).

sábado, 25 de fevereiro de 2012

José Carlos Cataño

Le crocodile et Mallarmé



Eugène Mallarmé, ilustre professor do Colégio de França, publica em 1899 a sua monumental Histoire Naturelle du Crocodile Africain. Um ano mais tarde tem a oportunidade de pisar o continente negro.

Agora encontra-se em Rwonga, frente ao seu primeiro exemplar vivo da espécie. O sangue gela-lhe, de imediato, o crocodilo avança e Eugène Mallarmé sobe a uma bananeira. Erguido sobre as patas traseiras, o monstro arrasta-se e trepa.

As últimas palavras do sábio, segundo as desconsoladas testemunhas, foram:

- Mais non! Mais non! Les crocodiles ne montent pas aux arbres!



(Versão minha; original reproduzido em Campo abierto - Antología del poema en prosa en España (1990-2005), selecção e organização de Marta Agudo e Carlos Jiménez Arribas, DVD, 2005, Barcelona, p. 95).

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ricardo Castro Ferreira

Sol avesso




















(Óleo sobre papel, 33x24; 2012).

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Laura Casielles

descentralizações (i)



Enquanto uma mulher na Provença
abotoava o corpete,
cinco mulheres preparavam as suas tigelas de henna*
num harém não muito longe de Tânger.
Enquanto se escrevia sobre o Cid,
escrevia-se também o Rubaiyat.
Emquanto se travava uma guerra entre a Prússia e a Áustria,
milhares de tártaros eram expulsos da Crimeia.
Ao mesmo tempo que Carlos Magno,
Kaya-Magan.
No dia em que Gravilo Princip
assassinou o príncipe Francisco Fernando
cumpriu-se o segundo aniversário
do dia em que se autorizou a compra do Canal do Panamá.
E no ano em que morreu Winston Churchill,
Mehdi Ben Barka desapareceu em Paris em estranhas circunstâncias
e a Índia independente tornou oficial uma das suas mais de trinta línguas.
Enquanto Bolívar montava o seu cavalo,
os ingleses instalavam-se na Tasmânia.
Os fuzilamentos do 2 de Maio
não são o mesmo que o 2 de Maio de 1812,
quando os colonos desistiram do sítio de Cuautla.

Se são curiosidades, todas são curiosidades.
Se são feitos importantes, todos são feitos importantes.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui, na página 73. *Corante muito usado no norte de África e na Índia para colorir ou tatuar as mãos e o corpo das mulheres).

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Igor Estankona

O adivinho



Um ramo oscilou levemente
mas o pássaro que o mundo esperava não está,
as nuvens vieram
mas não trouxeram a chuva que a terra desejava,
uma mosca caiu
mas o peixe que o lago esconde não veio à superfície.

Assim te espero eu
fazendo cáculos e mais cálculos.

Ouve-se a música
mas não há nenhum bailarino nesta sala vazia,
um perfume expande-se
mas as macieiras não estão ainda em flor,
deitei-me com mulheres
mas não se desfez a imagem do coração.

Assim te espero eu
procurando-te em qualquer sinal.



(Versão minha a partir da tradução para espanhol de Jon Kortazar reproduzida em Un puente de palabras - 5 jóvenes poetas vascos, selecção e organização de Jon Kortazar, Centro de Lingüística Aplicada Atenea, edição bilingue euskera/espanhol, Madrid, 2005, p.121).

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Jorge Luis Borges

(Acerca da tradução: fotografia de José Manuel Teixeira da Silva)


Xadrez (II)



O rei subtil, o bispo oblíquo, a feroz
rainha, torre frontal, peão ladino
sobre o preto e branco deste caminho
tomam e deixam armas da batalha.

Não conhecem a mão predestinada
do jogador governando o destino,
não conhecem o imenso rigor
que sujeita liberdade e viagem.

Também o jogador é prisioneiro
(disse-o Omar) de outro tabuleiro
pleno de noites negras, dias claros.

Deus move o jogador e este a peça.
Que deus atrás de Deus começa a trama
feita de pó e tempo e sonho e mortes?



(Versão de José Manuel Teixeira da Silva, a partir do original em castelhano incluído em Nueva Antología Personal, 2ª ed., Bruguera, Barcelo, 1983, p. 17. Com esta tradução e com a fotografia que, segundo nota do autor, "poderia chamar-se (parece-me) "acerca da tradução"", José Manuel Teixeira da Silva associa-se à comemoração dos quatro anos deste blogue, o que registo com grande satisfação e gratidão).

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Marlene Dumas

Contra o muro



O primeiro gesto é o pior.
Desenhar uma linha divide o papel em dois.
Desenhar mapas e fronteiras faz dos vizinhos estrangeiros.
Nas culturas bélicas todas as gerações de crianças foram educadas
a pensar exclusivamente em imagens-inimigo.

A arte é uma forma de dormir com o inimigo.

Tenho imenso respeito pelos jornalistas que arriscam
as suas vidas para nos mostrarem aquilo que está a acontecer aqui e agora. Não estou a [tentar
melhorar o seu trabalho. Não sou uma repórter local. Sou uma artista de estúdio.
Viajo através da minha imaginação, ou assim deveria fazer - vivo na minha imaginação.

Não quero que destruam Israel.
Quero que se acabe com a ocupação da Palestina.
Quero que acabemos a Segunda Guerra Mundial,
Para que possamos acabar a Terceira Guerra Mundial.
Mas isso não pode ser pintado. Só os muros podem ser pintados.

Nunca encarei a pintura como uma janela ou como um espelho do mundo.
Talvez a veja mais como uma porta com o aviso Não Entrar
ou uma carta com a informação "Devolver ao remetente - Desconhecido neste paradeiro".
Ou uma fronteira.



(Versão de Ricardo Castro Ferreira. Com esta colaboração do Ricardo - um retorno aos textos-poemas de Marlene Dumas - fica concluída a série dedicada aos quatro anos deste blogue. Agora é seguir em frente. Muito obrigado a todos).

sábado, 4 de fevereiro de 2012

4 anos a tombar do trapézio (4)

E mais uma mensagem de uma leitora (muito obrigado):

{anita}:
"Muitos parabéns! O Trapézio é um dos meus blogues favoritos, uma dádiva para quem gosta de ler boa poesia. Continuação de bom trabalho:)"

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

4 anos a tombar do trapézio (3)

Mensagens, comentários & um desafio de leitores (muito, muito obrigado):


Vasco Barbedo Nabais:
"Olá e parabéns pelos 4 anos.
Cada vez gosto mais de poesia à medida que vou lendo o seu blog (diariamente). É o único blog que conheço deste género, que tem um programa e que se comprometeu até ao fim (4 anos é muito). Vou descobrindo novos nomes e fico surpreendido: há tanta gente, de tantos países, que vive a poesia e o mundo, e eu nem sabia. Um dos poemas mais bonitos que conheço li-o aqui, de Jerzy Ficowski, que acaba lindamente: "mesmo que eu chegue atrasado / eu quero chegar a tempo." Só podia assim ser pela tradução que é. Parabéns!"

josé luís:
"parabéns!
leio sempre - e aqui descobri muitas palavras outras.
obrigado.

este é para si:
(e um desafio em tradução)


1(a

le
af
fa
ll

s)
one
l

iness


{e.e. cummings}"

Inteligência, coragem, amor, liberdade, ternura, delicadeza...

Wislawa Szymborska em português (europeu, e que eu conheça):

1) Paisagem com grão de areia, tradução de Júlio Sousa Gomes, Relógio D'Água, Lisboa, 1988.

2) Alguns gostam de poesia. Antologia, (poemas de Wislawa Szymborska e de Czeslaw Milosz), selecção, introdução e tradução de Elzbieta Milewska e de Sérgio das Neves, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2004.

3) Instante, tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, Relógio D'Água, Lisboa, 2006.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

4 anos a tombar do trapézio (2)

Parte de uma mensagem e uma tradução de José Carlos Barros:

"(...)
Sou amigo de um poeta cubano (Edel Morales) cuja poesia muito particularmente admiro. O Edel, já há uns tempos, pediu-me que lhe traduzisse um poema. É o que te envio em resposta ao teu desafio: o original e a tradução de "Viendo los autos pasar hacia occidente".
(...)"



Vendo os automóveis a passar em direcção do Ocidente



As ruas das pequenas cidades do centro de Cuba,
habitualmente buliçosas e doces,
ficam vazias nos meses de inverno.
Eu vivi essa pesada quietude.
Os estudantes tinham partido à descoberta do mundo
e uma paz, uma estranha e larga ausência,
atravessa as paredes e entra nos edifícios.
Os clubes, as casas de cultura, os campos desportivos
assemelham-se a uma cena, cuidadosamente preparada,
que espera o regresso dos actores para a continuação das filmagens.
Nas pequenas cidades do centro de Cuba
tudo é espera e ausência nos meses de inverno.
Eu vivi essa pesada quietude.
Noites de fevereiro na esquina deserta de Libertad e Paseo
vendo os automóveis a passar na direcção do Ocidente.
Como quem vê uma rapariga de pele muito limpa e cabelos negros
passar, abrindo o desejo, na direcção de outro homem.



*****


Viendo los autos pasar hacia occidente



En las pequeñas ciudades del centro de Cuba
las calles, habitualmente bulliciosas y dulces,
se quedan vacías en los meses de invierno.
Yo he vivdo esa pesada quietud.
Los esudiantes se han marchado a descubrir el mundo
y una paz, una extraña y larga ausencia,
llega hasta las paredes y penetra al interior de los edificios.
Los clubes, las casas de cultura, los campos deportivos,
semejan un set, cuidadosamente preparado,
que espera el regreso de los actores para continuar la filmación.
En las pequeñas ciudades del centro de Cuba
todo es ausencia y espera en los meses de invierno.
Yo he vivido esa pesada quietud.
Noches de febrero en la esquina vacía de Libertad y Paseo,
viendo los autor pasar hacia Occidente.
Como quien ve a una muchacha de piel muy limpia y cabellos negros
pasar gustosa hacia otro hombre.



Poema de Edel Morales; tradução de José Carlos Barros.


(Muito obrigado).

4 anos a tombar do trapézio (1)

Comentários e mensagens de leitores (muito obrigado a todos):

Amélia:
"Bastará dizer-lhe que o seu blogue é um dos meus preferidos que leio diariamente? Gosto das suas traduções, ainda que tantas vezes não possa confrontá-las com os originais. E gosto de tantos poetas que desconhecia e me tem dado a conhecer. Obrigada."

Neusa:
"Tantos poemas que li, imagens que vi, revelações, com os quais me identifiquei. Obrigada."

Carla Diacov:
"Parabéns e muitos posts de vida!!!"

Daniel Ferreira:
"Parabéns pelos quatro anos de vida e pela lufada de ar fresco que, no que toca à tradução, trouxeste à poesia portuguesa na internet. Muito pessoalmente e para não fechar a questão ao universo virtual, pela machadada no classicismo e na seriedade sisuda divulgada pelo universo literário português até então. Ou seja, obrigado por acabares com o autismo e pela variedade enquanto causa da consequente qualidade, pela possibilidade de poder conhecer outros autores e outro tipo de registos, abriste sem dúvida novos horizontes. Por tudo isso, muito mais e por o que está para vir: continuação e bons tombos. ;)
O mais sincero dos abraços."