Um te acende, Natura, com ardor,
Outro em ti depõe um luto banal.
Aquele que diz algo sepulcral
A outro gritará: vida e esplendor!
Hermes desconhecido, que me assistes
E que agora e p'ra sempre me intimidas,
Tu que me vais tornando igual a Midas,
O mais triste dos alquimistas tristes.
Através de ti transmudo ouro em ferro
E o paraíso ponho a fogo e ferro;
Naquelas nuvens compondo um sudário
Descubro um cadáver onde amando erro,
E num celeste espaço portuário
Edifico amplo jardim mortuário.
Tradução de Ricardo Castro Ferreira.
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(Nota: o tradutor, que colaborou já com este blogue em diversas ocasiões, fez-me chegar esta sua tradução do poema baudelairiano acompanhada de um aparato bibliográfico que considero conveniente elencar:
a) a versão original do poema, que reproduzirei mais à frente;
b) uma citação de Henri Michaux: "L'enfer, c'est le rythme des autres./ --------------------/ On parle à dés décapités/ les décapités répondent em "ouolof"". Esta citação serve, como talvez seja útil recordar, de epígrafe a Ouolof - poemas mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987;
c) uma afirmação algo enigmática sobre a natureza da tradução: "A tradução é, quanto a mim, a mais sublime e simultaneamente infame forma de morte.";
d) uma tradução literal do poema, da sua autoria, que abdica das rimas;
e) a tradução de Fernando Pinto do Amaral, que pode ser lida em As flores do mal, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, pp. 201-203;
f) a tradução da autoria de Maria Gabriela Llansol, a qual, por se relacionar directamente com a tradução acima apresentada, também reproduzirei de seguida (cf. As flores do mal, Relógio D' Água, Lisboa, 2003, pp. 175-177);
g) e, finalmente, um texto em prosa, sem título, de natureza reflexiva, que aqui será igualmente apresentado.
Infelizmente, não consigo respeitar, por deficiência do programa de texto do blogger, a estrutura estrófica dos textos apresentados.
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Alchimie de la douleur (texto original)
L' un t'eclaire avec son ardeur,
L'autre en toi met son deuil, Nature!
Ce qui dit à l'un: Sépulture!
Dit à l'autre: Vie et splendeur!
Hermes inconnu qui m'assistes
Et qui toujours m'intimidas
Tu me rends l'égal de Midas,
Le plus triste des alchimistes;
Par toi je change l'or en fer
Et le paradis en enfer;
Dans le suaire des nuages
Je découvre un cadavre cher,
Et sur les célestes rivages
Je bâtis de grands sarcophages.
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Alquimia da dor (tradução de Maria Gabriela Llansol)
Meu eu acentrado ilumina-se com teu fulgor
Meu eu gestor abafa-te em cê ó dois
Paisagem entre lixeira e esplendor
Me desencontro e te desfaço
Como explicar-te
Hermes ignoto que me guias?
Eis-me um exemplo de eficiência
A mais triste das alquimias
Sei fazer ferro a partir de ouro
Como se monta um inferno juntando afectos
No sudário das nuvens
Passam cadáveres aéreos que conheço
Nas margens do edénico
Urbanizo cemitérios
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[Pode dizer-se que...]
Pode dizer-se que Allan Poe é a figura inaugural da modernidade no negativo. Mas também se pode dizer, sem errar demasiado, que, de facto, a figura inaugural é Charles Baudelaire. Na verdade, o primeiro é, em certa medida, uma invenção do segundo. A tal ponto que Baudelaire traduziu textos de Poe como uma forma de apropriação, chegando a deixar no ar que a fronteira entre um e outro era da ordem do idiscernível. Poe terá agradecido e nós por ele. A Baudelaire o que é de Poe e a Poe o que é de Baudelaire. Será assim tão importante a questão da assinatura? A literatura pode ser (in)apropriada.
Em todo o caso, porquê traduzir? Há o original, quem quiser que o leia na sua língua. Depois podemos pensar na questão da divulgação, é verdade - uma forma estranha de (con)verter. Faz parte da política romântica da cultura ao alcance de todos e coisa e tal.
Quanto a mim, pode sempre colocar-se uma questão pertinente. Um poema, se é um bom poema, tem qualquer coisa de cobra, serpenteia por todo o lado, e o leitor anda por ali a errar. A certa altura, pode surgir o gosto, a necessidade, o impulso de fixar o original na língua de "chegada" (propósito ingénuo, se da tradução surgir também um bom poema, porque imediatamente se torna também ele um réptil difícil de agarrar).
Eu cá não gosto particularmente de traduzir. Agrada-me a ideia de errar (um dos verbos mais saborosos da língua portuguesa, com tanta ressonância, física, psíquica, moral, eu sei lá!). Todo o poema é, afinal de contas, um erro, do ponto de vista do silêncio estrutural do ser. Uma interpretação, por consequência, ou não, será um erro também. E a tradução? Outro rotundo erro. Walter Benjamin, que tem quase sempre razão, fala da tarefa do tradutor, precisamente a propósito da tradução d' As Flores do Mal. Paul de Man, na Resistência à Teoria (título bastante significativo), recorda que, em alemão, o verbo traduzir se liga ao verbo desistir, e, assim, a tarefa do tradutor seria, de certa forma, uma maneira de desistir. A errância na sua máxima passividade ou inércia total.
Mas há, afinal de contas, uma tradução. Foi despoletada pela versão libertina de Gabriela Llansol. Pensei cá com os meus botões: vamos lá responder a isto com uma versão constrangida pela forma soneto. O resultado está aí. A duplicação do "erro" é, talvez, o ponto mais fraco, mas valeu a pena pelo achado: "um cadáver onde amando erro".
Quanto ao poema original, permanece intocado, como cobra que morde a sua própria cauda. Mas se se dá o caso de apanhar alguém pelo caminho, no fundo é de si mesma que se alimenta.
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Obrigado, Ricardo, e desculpa o arranjo gráfico desastroso).
Da passagem de umas línguas para as outras
ResponderEliminarA tradução é um mister hermético, heterodoxo, talvez. O tradutor transforma o texto que está na origem recorrendo ao seu léxico e escolhe as palavras que lhe parecem ser adequadas. Tarefa perigosa, a tradução pode incorrer em 'hybris', quando, por vezes, constitui apenas um eco. Não obstante, a obra traduzida encerra sempre um certo eco, que funciona como intervalo entre o tempo do autor e o tempo do tradutor – os ritmos das estações de ambos são diferentes. Quando é a obra literária que está em jogo, o tradutor pode pecar pela quebra do que Rorty designa por «literariedade», na medida em que a pode eliminar durante o processo. Mas mesmo que a respeite (e a estime), o tradutor revelará sempre a sua interpretação, a sua leitura, e, deste modo, a tradução é sempre reescrita, repetição criadora – uma resposta. E porque é genesíaca é da ordem do milagre – principalmente quando a obra segunda é boa. (É fabuloso apropriarmo-nos das palavras e fazermos delas nossas, fazermos tudo o que quisermos com elas, pois é nelas que tudo é possível e se materializa. Podemos perseguir as palavras, mas não é isso que se pretende. O que acontece é que somos perseguidos por elas, ao acaso, sem que exista um plano.)
Do lusco-fusco [ou da heterodoxia (ou da alquimia (ou do poema ausente no poema presente))]
Prenhe é a imagem do poema que devora e é devorado. Sinto-me tentada a transpor essa imagem para a estética da recepção, e, assim, para o próprio leitor, que anda aos esses e se alimenta da poesia, ao mesmo tempo que é devorado por ela. Gosto de errar e errar na poesia, de andar em círculos, de escavar, de morrer nalguns versos e sentir o afluxo do sangue noutros - Cees Nooteboom, em 'A História Seguinte', refere que o corpo morto sente a dor da cremação. Só a (boa) poesia nos permite cair e voltar ao princípio - uma espécie de jogo com 'game over' e muitas vidas.
Celan diz que «a morte é uma flor», Silesius refere que a «rosa não tem porquê», e, para fechar esta adulteração silogística, Cesariny atestou que «entre nós e as palavras há metal fundente». Porque ser leitor e receber, em si, o poema é estar continuamente com os olhos raiados de sangue, é ser «uma espécie furiosa de pessoa comentando / com muito pormenor: / cabeças cheias de raiva e murmúrios no escuro». Pois «o poema é um animal: / nenhum poema se destina ao leitor».
P.S.: Andava à procura de matéria baudelairiana e encontrei casualmente este poema. Muito obrigada ao tradutor.