quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Kenneth Rexroth

 Veados



Os veados são gráceis e delicados
e têm olhos doces.
Não magoam ninguém para além de si,
os machos, e só por amor.
Os homens inventaram milhares
de maneiras de os matar.



(Versão minha. Fonte: aqui).

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Jorge Aulicino

 Coloristas



Há nesse bosque de Cézanne
a impressão de que esse bosque não está
nem esteve.
Não porque seja sonho, enredo de sonhos,
mas porque está pintado em parte
numa tela,
em parte no nada e - em grande parte -
no local onde vimos um bosque.



(Versão minha. Fonte: La doble sombra. Poesía argentina contemporánea; selecção de Antonio Tello e José Di Marco; Vaso Roto, Madrid, 2014, p. 47).

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Rafael Felipe Oteriño

 A partir desta idade



A partir desta idade vê-se tudo:
vê-se a margem impetuosa,
vê-se o fulgor das colinas,
vê-se o pátio onde tudo acontece,
vêem-se as portas que ninguém abre,
vêem-se os desertos que ninguém celebra;
vê-se o mar e vê-se a espuma do mar,
vê-se o rio que vem da infância,
vêem-se as nuvens correndo leves mais além,
vê-se a lua e o esplendor da caverna
- o cume como um pensamento inacabado - 
vê-se o centro do mundo sem se mudar de lugar,
vê-se por cima e por baixo, à direita e à esquerda, com os olhos fixos,
e vêem-se nítidos, feitos de espanto e liberdade,
os nossos pés desnudos no ar
sem encontrarem nunca a terra firme que procuram.



(Versão minha. Fonte: Nueva poesía argentina; selecção e introdução de Leopoldo Castilla, Hiperión, Madrid, 1987, p. 63).

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Ilyas Zhansuguirov (1894-1938)

 Nevão



Um nevão maciço tapa-nos com a sua neve.
O frio intenso revela-se bem duro.
Ao rés do vento as ovelhas avançam,
as suas cabeças protegem-se na direção das correntes de ar.
A neve vai aumentando, esconde-se em si mesma
e ressurge incessante.
Apoia-se no teu cajado junto às tuas ovelhas.
Taímas o indigente treme.
Tem uma pedra de afiar atada a uma corda.
O seu avental de feltro reluz enquanto se arrasta.
Entre as costas e o peito abre-se lentamente.
Os joelhos brilham debaixo das calças.
O seu corpo arrefece à medida que se move.
O vento silva, sopra asperamente.
A neve acumula-se congelando-lhe o pescoço.
Pingentes de gelo aparecem-lhe pendurados na barba.
Com o seu gorro de raposo e o sobretudo quente,
Duisek o rico está ao frio na colina
e grita: "Leva para longe esse rebanho das ovelhas!"
Fazendo-se passar por dono de Taímas,
vocifera em altas vozes:
"Que não te aproveite o que roubaste, cão!",
e prossegue, grasnando entre os corvos.



(versão minha. Fonte: Antología de la poesía kazaja contemporánea (Siglos XIX, XX y XXI); selecção de Justo Jorge Padrón; Ediciones Vitruvio, Madrid, 2017, p. 97).

domingo, 12 de dezembro de 2021

Jorge Aulicino

 O muro dos fuzilados



O problema do muro dos fuzilados
é que está em qualquer sítio.
Não se pode dizer: foi aqui,
aqui caiu Pancho, ali González,
mais além, com espuma sangrenta nos lábios,
Enrique gritou "viva a Revolução".
Não se pode dizer esta é a parede,
aqui, estes ladrilhos talvez estejam
salpicados de sangue.
Os fuzilados apostam que não é o momento
de morrer fuzilado.
Um caiu com os olhos abertos,
outro, duro como um tronco:
à força de disparos
só então a história se ilumina.
Só então, por um instante.
Mas esse não é o jogo.
O jogo prossegue, há outros dados,
não revelem a ninguém o muro
dos fuzilados.
Os fuzilados não querem monólitos
nem pedras nem o quadro dos fuzilados.
Os fuzilados queriam que se dissesse "não sei"
se alguém pergunta pelo muro dos fuzilados.
Não sei onde está o muro, não sei, é cedo,
não sei nada de González, ou de Pancho.



(Versão minha. La doble sombra - Poesía argentina contemporánea; selecção de Antonio Tello e José di Marco; Vaso Roto, Madrid, 2014, p. 50).

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Gloria Fuertes

 Porque não me casei (Autobio)



Em 36 tive um noivo que me amava muito,
mas dedicava-se à política,
e entre o poder e a Gloria
escolheu o primeiro.
Depois tive outro,
na outra
banda,
mas mataram-no.
Por isso sou pacifista e
solteira.



(Versão minha. Ellas cuentan la guerra - Las poetas españolas y la guerra civil (Antología 1936-2013); selecção de Reyes Vila-Belda, Ranacimiento, Sevilha, 2021, p. 239).

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Juan Carlos Moisés

 [Quem me viu?]



Quem me viu?
Na zona por onde andei ladraram.
A noite era demasiado negra
para que alguém - fosse quem fosse - pudesse dizer:
- Era ele. Vimos a sua cara.

Mas quem pode acreditar em cães cavalos galinhas pintos.



(Versão minha. Nueva poesía argentina; selecção e introdução de Leopoldo Castilla, Hiperión, Madrid, 1987, p. 101).

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Juan Bonilla

 Os poetas malditos



oh essas raparigas que perdem a cabeça por Sylvia Plath
porque foi capaz de fazer o que elas nunca farão
(não me refiro às metáforas atropeladas que escrevem sobre o medo
de se amarem um pouco a si mesmas
mas sim a suicidarem-se)

e esses rapazes que imitam Bukowski
(não me refiro a escreverem poemas descosidos sobre a sua própria miséria
mas sim a embebedarem-se com a certeza de que um dia
alguém os vai tirar da miséria)

e os Rimbauds de bairro baixo
que já que não podem traficar armas e deixar de escrever poemas
escrevem poemas e masturbam-se sonhando
com um cirurgião do deserto que lhes amputa uma perna

e quantos Lautréamonts de bairro alto
que adorariam ter um assomo de energia
para tirar a seringa do braço
e escrever com o próprio sangue algum verso assassino

oh os Maiakovskis
dando murraças à esquerda e à direita abrindo sobrolhos
e socando bochechas e recebendo em algum momento uma cabeçada,
com os narizes partidos e felizes, erguidos de pé para dizer a revolução

e os ternos tristes jovens que eugenizam, senam, herbertam,
ou fazem tintilar as moedas musicais de Pessoa
e escrevem ironias sentenciosas sem terem ainda perdido nada
e do seu tédio fazem melancolia fugitiva
num mundo de selfies
e estão convencidos de que a comida mais importante do dia
é um livro de poemas

invejo-os a todos por terem 
aquilo que já perdi para sempre:
a cega confiança de que escrever
é um modo de engrandecer a vida

a confiança cega de que viver
não é nada
se depois não nos serve
para cair de bruços
num poema.



(Versão minha; Horizonte de sucesos; Renacimiento, Sevilha, 2021, pp.115-116).

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Hindol Bhattacharya

O leitor



À distância de uma mão a existência às vezes ainda estremece.
A mente dentro da mente,
a escada até às águas-furtadas, nada há depois,
os habitantes da casa limitam-se a contaminar a água.
Olhas a lonjura, não é verdade?:
estou aqui, porém não o podes sentir,
limpas a casa, arrumas os livros, moves as cadeiras como se alguém tivesse regressado.



(Versão minha a partir da tradução de Subhro Bandopadhyay, revista por Violeta Medina, incluída em La pared de agua - Antología de poesía bengali contemporánea; Olifante, Saragoça, 2011, p. 229).

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Esteban Peicovich

 Marca de água



- Profissão?
- Sou poeta. Suponho.
- Nada de suponhos aqui. Põe-te direito. Não te apoies na parede. Olha o tribunal. Tens uma profissão estável?
- Pensava que essa era uma profissão estável.
- Mas, em termos gerais, qual é a tua especialidade?
- Sou poeta, poeta tradutor.
- Quem te reconheceu como poeta? Quem te colocou nas fileiras dos poetas?
- Ninguém. Quem me colocou nas fileiras da espécie humana?
- Estudaste para sê-lo?
- Para ser o quê?
- Poeta. Não podias ter prosseguido os teus estudos no instituto, onde poderias preparar-te e aprender?
- Nunca pensei que isso fosse questão de ensino e aprendizagem.
- Então?
- Acho que isso... vem de Deus.


(Diálogo que teve lugar na manhã de 18 de fevereiro de 1964 no tribunal do distrito de Leninegrado entre a juíza Irina Savaleva e o "parasita social e rufia imprestável" de 24 anos Joseph Brodsky, que 23 anos depois - 1987. aos 47 - obteve o Prémio Nobel da Literatura).




(Versão minha; Poemas plagiados; Germania, 2ª edição, Valência, 2001, p. 66).

terça-feira, 9 de novembro de 2021

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Diego Vaya

 O poeta fala da sua circuncisão



Despede-te, prepúcio, deste pénis tão
Por ti oprimido, com rigor tão grande;
Quanto a ti, freio, diz adeus à glande:
Já não serás do seu erguer o travão.
 
Por fim conhecendo a liberdade, nada retém
O meu membro, cuja potência se expande;
Antes, pénis coitado; agora porém brande
A sua alegria, esta que glorioso sustém.
 
Oh pénis circuncidado, enfim libertado,
Feito para a diversão e para gozar
Para bem do colectivo, e do particular!
 
Ditoso pénis, pénis assim sorridente,
Como rei recentemente coroado
Sem temor levantando a augusta frente!



(Versão minha, corrigida com a colaboração de um leitor atento e generoso; original algures por aqui)

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Craig Santos Perez

O amor em tempos de alterações climáticas

Reciclando o "Soneto XVII" de Pablo Neruda 



Não te amo como se fosses um desses raros metais terrestres,
ou um diamante de sangue, ou uma reserva de crude 
que origina guerras. Amo-te como se ama as espécies mais
vulneráveis: com urgência, entre o espaço vital e a sua destruição.

Amo-te como se ama a última semente guardada
num cofre, a que gera a herança das nossas raízes
e, graças ao teu corpo, o sabor que amadurece
nos seus frutos continua vivo e doce na minha língua.

Amo-te sem saber como ou quando vai acabar 
este mundo. Amo-te organicamente, sem pesticidas.
Amo-te assim porque só poderemos sobreviver

no composto rico em nitrogénio do nosso enlace,
tão unidos que as tuas emissões de carbono são minhas,
tão juntos que o nível do teu mar subirá por causa do meu calor.



(Versão minha; original aqui).

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Juan Bonilla

 Fogueira



Fomos duas pedras
que um deus inimputável
batia uma e outra vez
à procura de uma chispa de fogo
que começasse uma fogueira
trouxesse calor
contra o frio do tempo,
o frio de estarmos sós,
o frio de não sermos mais que marionetas
de um deus inimputável.

Duas pedras
envoltas em pele
golpeando-se uma e outra vez
para ver se caía a gota
de fogo capaz de dar início
a uma fogueira
que incendiasse o mundo.



(Versão minha; poema incluído em Horizonte de sucesos; Renacimiento, Sevilha, 2021, p. 47).

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Robert Bly

 Ao escutar um grilo por trás de um lambrim de madeira



O som que ele produz é como um barco de velas negras.
Ou como uma viúva debaixo de uma sequóia, a avisar
quem passa que a árvore está prestes a cair.
Ou como um sino de estanho preto numa aldeia mexicana.
Ou os pêlos na orelha de um homem com cem anos.



(Versão minha; original reproduzido em The invisible ladder; organização de Liz Rosenberg; Henry Holt and Company, Nova Iorque, 1996, p.25)

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Jorge Boccanera

 Colher



Nasce do verbo dar,
como se o coração tivesse uma pega.
É feita daquilo que lhe falta. Nunca guarda nada para si.
Poderia medir o mundo, embalá-lo, transportar
o seu mistério, os seus campanários de água de uma margem à outra.
Mais humana que um cão.
Mais à mão que Deus.



(Versão minha; Poesía argentina - Antología esencial; selecção de Marta Ferrari; Visor, Madrid, 2010, p. 458).

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Miguel d' Ors

 Números grandes



Oh belas lançadoras nórdicas do martelo
- um metro e oitenta e quatro e noventa e seis quilos -,
com esses intrincados apelidos viquingues
e essas tranças albinas presas com lacinhos
cor de rosa que trazem um toque feminino
à vossa imensidade, na qual adivinho
um coração de menina, inocente e sensível,
empapado pelo romantismo mais doce.

Oh vénus XL, com que deleite vejo
como o martelo voa, acompanhado pelo vosso grito
de mulheres guerreiras de um velho tempo mítico;
e com que graça enorme vos retirais do círculo
de volta ao sorriso e ao sentimentalismo.

Que feliz há-de ser aquele a quem o destino
atribuiu a sorte de ser o vosso marido,
que prazer lhe dará, nos silêncios íntimos,
ser abraçado por esses braços, rendidos
à ternura, e (tenho a certeza de que agora
algum ou alguma imbecil me acusará de machismo)
ver noventa e seis quilos de mulher submetidos
à secreta força do amor.
                                        Invejo-o a ele
tanto como a vós, valquírias, vos admiro.
É a vossa formosa imagem o motivo principal
pelo qual, de quatro em quatro anos, fervoroso, sigo
todas as transmissões dos jogos olímpicos.

                                                                        
                                                                    24-X-2020


(Versão minha; Viaje de invierno; Renacimiento, Sevilha, 2021, pp. 27-28)

domingo, 26 de setembro de 2021

Mario Trejo

Gatsby blues 



Tenho amor e dou-o
Alguém sente a minha falta
Outros precisam de mim
Tenho recordações imortais
E esquecimentos de rodas que giram em sentido contrário

Penso toda a razão
E sinto como um místico
O meu Eu fez as pazes com o Outro

Só me faltam 900.000 dólares para ser feliz



(Versão minha; Poesía argentina - Antología esencial; selecção de Marta Ferrari; Visor, Madrid, 2010, p. 231).

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Karmelo C. Iribarren

 As coisas



Dizem que as coisas
não falam,
mas o armário range, a torneira goteja
e a escova dos dentes
pode fazer-te sangrar.
Não falemos das chaves
que se perdem,
do guarda-chuva que se esquece
ou da carteira que te roubam.
Quem nos garante que não o desejavam
há muito
tendo em conta a forma como as tratamos.
Andam por aí, as coisas, servindo-nos
e são felizes ao fazê-lo.
Mas também nos observam.
Algumas continuarão cá
quando não estivermos,
e falarão de nós.



(Versão minha; El escenario; Visor, Madrid, 2021, p. 49).

sábado, 18 de setembro de 2021

Jorge Calvetti

 Epitáfio da cidade de Esteco



Construída pelos homens
desgastada pelo vício
e desfeita por Deus,
eu fui Esteco.
Gentes de ouro e lascívia
e o orgulho púrpuro do pecado
apoderaram-se de mim.
Os pumas, o vento e o matagal crescem hoje
onde o prazer alçou o seu canto...!



(La poesía del siglo XX en Argentina - Antología esencial; selecção de Marta Ferrari; Visor, Madrid, 2010, p. 80.)

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Mohammed Achaâri

 Preocupações literárias



Qual é a forma menos dolorosa?
Quais são as palavras menos amargas?
Qual é o tempo menos frágil?
Qual é o lugar menos desolado?
Qual é o começo menos confuso?
Qual é o final menos horrível?
Qual é a fórmula menos cortante?
Qual é a pergunta menos estúpida?
Qual é a resposta menos falsa?
Qual é a despedida menos lacrimosa?
Qual é o silêncio menos pesado
e a marcha com a franquia mais baixa
para acabar com estas extravagâncias?



(Versão minha a partir da versão castelhana apresentada em La poesía marroqui - De la independencia a nuestros días (Antología); selecção de Abdellatif Laâbi, Idea, Tenerife, 2006, p. 55).

Sun Yün-Teng

 O caminho pela garganta de Wu



O caminho sobe em ziguezague até 
Lá acima, sobre os remoinhos
Vertiginosos. As águas dos rápidos quebram-se
Contra as rochas escarpadas. Com a 
Brisa vespertina chega o som da 
Flauta que um rapaz toca no
Regresso a casa com um boi. As últimas
Gotas de chuva misturam-se com
A nuvem que o hálito do meu cavalo gera.
A erva nova cresce sobre as
Antigas muralhas. Nos monumentos
Abandonados as inscrições
Antigas remontam a tempos remotos.
Condenada a uma viagem sem fim à vista,
Não consigo suportar o canto do cuco.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Carlos Manzano da tradução inglesa de Kenneth Rexroth e Ling Chung, incluída em El barco de orquídeas - Poetisas de China; Gadir, Madrid, 2007, p 89.



sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Roque Dalton

 O descanso do guerreiro



A cada dia que passa os mortos estão mais indóceis.

Antes com eles era fácil:
dávamos-lhes um colarinho engomado com uma flor
louvávamos-lhes os nomes numa longa lista:
pois que os gabinetes da pátria
pois que as sombras notáveis
pois que o mármore monstruoso.

O cadáver assinava em nome da memória
punha-se de novo na fila
e marchava ao compasso da nossa velha música.

Mas algo aconteceu
os mortos
são outros desde então.

Agora mostram-se irónicos
perguntam

Parece-me que se deram conta
de que são cada vez mais a maioria!



(Versão minha; poema incluído em Nuestra poesía en el tiempo (uma antología); selecção e prólogo de Antonio Colinas; Siruela, Madrid, 2009, p.597).

domingo, 1 de agosto de 2021

Gerry Murphy

 A minha vida como estalinista



"Lacaio do capitalismo!",
gritei eu para o meu pai por cima da mesa do jantar,
durante uma discussão sobre a viabilidade
do Segundo Plano Quinquenal,
ou o regresso de Fianna Fáil ao governo,
ou o meu desgraçado relatório escolar
- ou, provavelmente, por causa de todos estes assuntos.
A conversa engasgou-se num impasse
e, por alguns momentos, fez-se silêncio.
A reacção do meu pai foi uma gargalhada,
própria de quem sabia muito bem que eu só em parte
alcançava o significado do mal direcionado insulto.
"Tens jeito para os "slogans", meu rapaz,
mas tens de aprofundar um pouco mais
as leituras que os sustentam."
"Melhor ainda, volta ao teu amado Estaline
e estuda os seus volumosos ensaios
sobre estas questões e os seus métodos de lidar
com "reaccionários", "sabotadores" e "lacaios",
depois podes vir ter comigo
e chamar-me o que te apetecer".



(Versão minha; poema do livro My life as a stalinist; Southword, Cork, 2018, p. 24).



segunda-feira, 26 de julho de 2021

Huang O (1498-1569)

 Para a melodia "A queda de um pequeno ganso selvagem"



Noutros tempos eu era jovem e sedutora
E bamboleava-me por aqui
E por ali no nosso quarto perfumado
Com orquídeas. Tu e eu juntos
E embrenhados atrás das cortinas de
Gaze da nossa cama impregnada
De incenso. Estremeci nos teus braços.
Levavas-me no teu coração
Por onde quer que andasses. De súbito
Uma bala derrubou a fêmea
Do pato-mandarim. A música da
Cítara de jade foi esquecida.
As fénix tiveram de separar-se.

Estou só na minha casa
Repleta de primavera e
Tu estás longe, a fazer amor
Com outra, ambos felizes
Como dois peixes na água.
Aquela vaquinha insuportável
Com as suas artimanhas de coquete!
O melhor é que não se esqueça de que
Esta puta velha ainda é muito capaz
De lhe fazer uma bela cena, bem furiosa.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Carlos Manzano da tradução inglesa de Kenneth Rexroth e Ling Chung, incluída em El barco de orquídeas - Poetisas de China; Gadir, Madrid, 2007, pp. 73-74).

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Paul Morand

Recordação de Ístria



Sou um estrangeiro no meu país;
o meu país é estrangeiro para os outros países;
sou estrangeiro para os dois estrangeiros
que vivem dentro de mim como numa casa alugada.
Olha este mar e estes estaleiros;
azul e negro é uma harmonia
que os Persas, dizem, não desdenharam.

Aqui existia a reserva das feras do Circo Hagenbeck.
Todos os animais nascidos após
o domínio italiano parecem doentes.
Menos os macacos:
têm os olhos de quem já leu tudo,
nos seus ventres de tordilho
há um pirulito rosado
que faz rir as esposas dos armadores que apanham enguias.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Marie-Christine del Castillo, incluída em Oda a Marcel Proust y otros poemas; Renacimiento, Sevilha, 2007, p. 121).

sábado, 17 de julho de 2021

Francisco Villaespesa (1887 - 1936)

 Humildade



Mostra um pouco de amor pelas coisas:
pelo musgo que acalma a tua fadiga,
pela fonte que a tua sede mitiga,
pelas pedras e pelas rosas.
Em tudo encontrarás uma beleza
virginal, um prazer desconhecido...
Acerta o ritmo do batimento
do teu coração com o coração da Natureza.
Recebe como um santo sacramento
o perfume e a luz que te dá o vento...
Quem sabe se o seu amor nele te envia
aquela que a vida transformou...!
E sê humilde, e lembra-te que um dia
te há-de cobrir a terra que pisaste!



(Versão minha; original incluído em Nuestra poesía en el tiempo (Una antología); selecção e prólogo de Antonio Colinas; Siruela, Madrid, 2009, p. 381).

terça-feira, 13 de julho de 2021

Ernesto Mejía Sánchez

 Vita arsque poetica



Baptizo as palavras,
ponho nomes aos nomes. Digo
a noite e o significado é uma
pomba. Imagino o leopardo
e os teus olhos choram. Sofro a luz,
o dia, e ganho a impureza.
Desenho mais um rosto, Deus
meu!, sobre o teu. Escrever
um poema é como recordar
o futuro. É conceber um filho
no túmulo. Gravo o teu nome
e confunde-se com o meu.
Que pai repentino sou
nesse mesmo instante. Que
deus sobre este muro ando
a macular desde que nasço.
Este é o meu testamento, o meu
baptismo, à tua imagem e semelhança.



(Versão minha; poema incluído em Nuestra poesía en el tiempo (Una antología); selecção e prólogo de Antonio Colinas; Siruela,Madrid, 2009, pp. 498-499).

sábado, 10 de julho de 2021

Paul Morand

 [Para que tantas coisas más]



Para que tantas coisas más,
que ainda persistem, fossem destruídas,
era preciso devastar 
tantas coisas boas que nunca mais existirão?



(Versão minha, a partir da tradução castelhana de Marie-Christine del Castillo incluída em Oda a Marcel Proust y otros poemas; Renacimiento, Sevilha, 2007, p. 38).

terça-feira, 6 de julho de 2021

Gerry Murphy

 Canibal



A primeira vez 
que provei carne humana
tinha dez anos.
Deu-se durante uma discussão
com o meu irmão mais velho, de doze anos,
quando ele rebaixou
os meus adorados Beatles,
dizendo que eram exageradamente valorizados
e só para cretinos.
Perdi a cabeça,
fui-me a ele
e arranquei-lhe um pedaço considerável
de carne do ombro,
parte do qual
- cartilagem muito provavelmente -
ficou presa entre os dentes.
Seguiram-se uivos e rangidos
até que a minha mãe interveio.
Ficou tão chocada
com aquilo que eu acabara de fazer
que se esqueceu de me bater
e mandou-me directamente para a cama
sem jantar.
Mas, dah!, eu já tinha comido.



(Versão minha; original incluído em My life as a stalinist; Southword editions; Cork, 2018, p.17).

domingo, 27 de junho de 2021

Gerry Murphy

 Oh pelo amor de Deus



A fralda de pano
está fria, molhada, cheia.
Tenho três meses
e estou já a viver a minha primeira
- lanço os foguetes e apanho as canas -
crise existencial.

E só estamos em 1953!



(Versão minha; original incluído em My life as a stalinist; Southword editions, Cork, 2018, p.10)



domingo, 23 de maio de 2021

Manuel Vásquez Montalbán

 Verão e fumo



Já sabemos o que custa
vencer a resistência tenaz
de duas pernas unidas
                                    o sabor
de um certo hálito amargou de madrugada
o ar nas nossas fauces
e o corpo descobriu-se amolecido ao despertar
ou triste fez queixas devido a um frio caído no esquecimento

e no entanto
mais de uma vez as árvores tornam-nos outonais,
a rua brilha debaixo da chuva amarela,
damos lume a um solitário que erra
pelo molhe
                    e assobiamos uma melodia
vulgar, já tarde, quando os veleiros
mentem sobre os portos ansiados e o ar
salino não pergunta
                                quem
quem não teme perder o que não ama?



(Versão minha; poema incluído em Poesía completa - Memoria y deseo (1963-2003); Visor, Madrid, 2018, p. 75). 

sábado, 15 de maio de 2021

Lars Huldén

 [Dois sábios...]



Dois sábios enredavam-se numa disputa sobre
a idade da árvore sob cuja sombra
se haviam sentado. Solucionaram o conflito
à maneira clássica:
cortando a árvore.
Ao fazerem a contagem dos anéis anuais observaram
que um se havia aproximado um pouco mais da verdade
que o outro.



(Versão minha a partir da tradução espanhola incluída em Veintidós poetas finlandeses; tradução e selecção de Francisco J. Uriz e Juan Capel; prólogo de Lars Huldein, 2014, Saragoça, p. 89).

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Joseba Sarrionandia

 Voltar a casa



Com os mapas do tesouro debaixo do braço
                            deixei a minha casa e avancei
pelos esconderijos do medo em busca
                                                do canto das sereias.

Na encontrei na viagem mais do que lascas
                                                cinzentas de pederneira
e ninhos nojentos de melros no mais recôndito
                                                das selvas obscuras.

Quando o tempo esgotou o caminho
                                           e regressei a casa,
era nova a madeira da porta e
                                           a fechadura tinha sido mudada.



(Versão minha; poema incluído em La poesía está muerta; tradução do basco pelo autor; edição bilingue basco/espanhol; selecção de Eva Linazasoro; Pamiela, Arre, 2016, p. 29).

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Benjamín Prado

 Escrito em Lisboa



Dizia que se escreve porque existir não chega
e que passou incógnito pela sua vida;
que ser poeta era a sua forma de estar sozinho
e que se sentia sempre
"vencido como alguém que sabe a verdade".

Ao lado da sua estátua
contei a Maria que Pessoa sonhava
estar longe, apartado de quem era;
que construía ruínas
                                e que alguns o designavam
como o arquitecto do inacabado.

Acreditava que esconder-se significava ser livre
e que fechar os olhos o separava do medo:
"- Troca por vinho o doce amor que não terás."

Ontem vim a Lisboa
porque era a cidade desse homem triste
que só lutava para fugir ao combate;
que pensou que quem cala é dono do silêncio;
que não precisava de mais do que seis palavras
para contar a sua história:
"invejo todos porque não são eu";
e hoje parto seguro de que não trocaria
os seus versos negros pela marca branca
do teu anel na minha pele.

Prefiro estar contigo e que me esqueçam
a escrever uma obra prima na qual conte
que ainda não te encontrei
ou que já te perdi.



(Versão minha; Acuerdo verbal - Poesía completa (1986-2014); Visor, 2ª edição, 2018, pp.427-428).

sábado, 24 de abril de 2021

Blanca Varela

[Poemas. Objectos da morte. Eterna...]



Poemas. Objectos da morte. Eterna imortalidade
da morte. Algo como um gotejar febril e
nocturno. Poesia. Urina. Sangue.

Morte fluente e perfumada. Grande ouvido de
deus. Poesia. Silenciosa algaraviada do coração.



(Versão minha; original incluído em Antología La poesía del siglo XX en Perú; selecção de José Miguel Oviedo; Visor, Madrid, 2008, p. 420).

terça-feira, 20 de abril de 2021

Pranabendu Dasgupta

 Despida



Da palavra retiro a pulseira do tornozelo,
soará por si mesma.

A memória das pessoas está no interior da casa -
o que há lá fora? Os animais, mais gente, o jogo infinito.

A palavra acolhe tudo?

Se o interior é assim tão forte
para que será necessária
a música elaborada?

A língua bengali evolui a cada momento;
há que retirar-lhe então a pulseira acessória 
que lhe tilinta no pé,

deixar que soe o jogo do pé descalço.



(Versão minha a partir da tradução castelhana incluída em La pared de agua - Antología de poesía bengali contemporánea; organização e tradução de Subhro Bandopadhyay, adaptação de Violeta Medina; Olifante, Saragoça, 2011, p. 95).

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Rómulo Bustos Aguirre

 Nevermore



- Toc,toc, toc...
- Quem é?
- Orfeu
- O que desejas?
- Que me devolvam Eurídice
- O que ofereces em troca?
- Cantarei de modo que as pedras me sigam e as gazelas suspendidas detenham o seu voo
- Esse é um truque gasto, Orfeu. Já não satisfaz os Senhores da Morte.

Orfeu, penando em redor das portas do Hades, esgota todos os oferecimentos. Finalmente os deuses, num gesto entediado, transformam-no num corvo. 
É esse corvo que adeja incessante no poema de Poe.



(Versão minha; poema integrado no livro Casa en el aire; Pre-Textos, Valência, 2017, p. 59).

terça-feira, 6 de abril de 2021

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Hama Tuma

 Perseverança



Vivi acima das minhas possibilidades,
rasgando os limites da vida,
recusando-me a "pôr-me no meu lugar"
- ou a aceitar o meu destino.

A lua é andrajosa,
o meu firmamento está todo esburacado,
tenho fome e sede, e estou farto
de enterrar corpos debaixo do céu.

Mas pelo menos vivi
acima das minhas possibilidades,
recusando-me a pôr-me no meu lugar
- ou a dobrar-me diante do meu destino.




(Versão minha a partir da tradução inglesa incluída em Songs we learn from trees - An anthology of ethiopian amharic poetry; selecção/organização de Chris Beckett e Alemu Tebeje; Carcanet, Manchester, 2020, p. 247).


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Marvin Bell

Estar apaixonado



por alguém que não está apaixonado
por nós, estás a ver a minha situação.
Estar apaixonado por ti, que não estás
apaixonada por mim, percebes o meu dilema.
Estar apaixonado pela ideia de estares apaixonada
por mim, o que não acontece, compreendes

o problema. Estar apaixonado pelo teu 
modo de estar, podes imaginar como é duro.
Estar apaixonado pelo teu modo de seres tu,
mesmo que o teu modo de seres tu não seja o de estares
apaixonada por mim, podes julgar como é e compadeceres-te
por eu estar apaixonado por ti. Estar apaixonado

por alguém que não está apaixonado é ficar a saber
tudo sobre estar apaixonado quando estar apaixonado
é estar apaixonado por alguém que não está
apaixonado por ti, que é o que significa
estar apaixonado, o que tu sabes muito bem,
Minha Paixão, que é estar apaixonado pelo estar apaixonado.



(Versão minha; original incluído em The invisible ladder; organização de Liz Rosenberg; Henry Holt and Company, Nova Iorque, 1996, p. 8).

sábado, 27 de março de 2021

Hanadi Zarka

 Não há sítios maus para se dar um beijo



Ele disse-lhe que a rua
não era o seu lugar preferido para trocar beijos
mas ela insistiu

Não há sítios maus para nos beijarmos.



(Versão minha a partir da tradução francesa de Maram al-Masri incluída na Anthologie des femmes poètes du monde arabe; selecção de Maram al-Masri; Le Temps des Cerises, Montreuil, 2019, p. 30).

terça-feira, 23 de março de 2021

Dorianne Laux

 Em defesa dos estranhos



Seja qual for o peso, o desgosto,
o nosso dever é carregá-lo.
Erguemo-nos e seguimos em frente, força obtusa
que nos empurra através das multidões.
Eis o jovem que me indica a direção
tão avidamente. A mulher que segura a porta de vidro aberta
e aguarda com paciência que o meu corpo vazio passe.
E isto o tempo todo, cada gesto de bondade
desencadeando outro - um estranho
que canta para ninguém enquanto avanço, as árvores
que oferecem a sua floração, a criança
que levanta os olhos amendoados e sorri.
De algum modo vêm sempre ter comigo, parece
que estão apenas à espera, protegendo-me
de mim própria, daquilo que me impulsiona
tal como os deve ter impulsionado em algum momento -
esta tentação de darmos um passo atrás frente ao abismo
e cairmos sem peso, para longe do mundo.



(Versão minha; original aqui).

segunda-feira, 15 de março de 2021

Vojislav Karanovic

 O primeiro poema



"Toda a gente tem de ser alguma coisa" -
era o título do meu primeiro poema,
escrito aos sete anos.

O primeiro verso coincidia com esse título,
seguiam-se mais versos empolgados
sobre como toda a gente tem de ser alguma coisa:

"alguém tem de ser médico,
alguém tem de cortar a relva,
alguém tem de escrever poemas"

e outros do mesmo género
dos quais agora já não
me lembro.

O poema acabava com um verso
idêntico ao primeiro:
"Toda a gente tem de fazer alguma coisa".

Enquanto fazia as limpezas, o meu pai
atirou o poema fora, como um bocado de papel
que acumula pó.

Pensei nisto muitas vezes,
por vezes sentindo pena,
até que percebi:

o papel com as palavras do poema
pode ser rasgado, desprezado,
ou atirado ao fogo

que isso não afecta o poema. Ele é
como um ser humano: pode estar perdido,
vaguear por aí, morrer, mas não desaparecerá.



(Versão minha, a partir da tradução inglesa de Biljana D. Obradovic, incluída em Cat painters - An anthology of contemporary serbian poetry; organização de Biljana D. Obradovic e Dubravka Djuric, Diálogos Books, 2016, pp. 233-234).

domingo, 7 de março de 2021

Yassin Adnane

 Os poetas



São assim os poetas!
As mulheres que os desejam
são menos belas
que as amantes dos cantores
e das estrelas de futebol
As secretárias das administrações
não têm por eles qualquer consideração
e as locutoras do primeiro canal
mal os suportam
Até os empregados de mesa
das tabernas infames
servem-nos quase sempre de má vontade

Só os chicotes dos verdugos
os reconhecem
Só as balas dos cobardes



(Versão minha a partir da tradução espanhola de Antonio Álvarez de la Rosa incluída em La poesía marroquí - De la independencia a nuestros días (Antología); selecção de Abdellatif Laâbi, Idea, Tenerife, 2006, p. 62).

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Robert Bly

Coisas que eu e o meu irmão podíamos fazer


                                                          Para W. S.


Bem as coisas a fazer não têm fim.

Podíamos sair e apanhar esquilos.
Podíamos ler livros.
Podíamos remover a lama dos pneus do tractor.

Podíamos pensar num faisão a cair.
Podíamos pensar no Pai a cair.
Podíamos ver o sítio onde ele caiu.

Caiu numa noite, já tarde,
E bateu com a cabeça num raspador de botas -
Não morreu - enquanto se despedia dos outros.

Podíamos perguntar coisas sobre a Guerra.
Podíamos pensar na Bertha, que morreu.
Podíamos pensar na sua filha, que vivia connosco.

Podíamos pensar no motivo da sua cara ser tão magra.


(Versão minha; poema incluído em The invisible ladder; organização de Liz Rosenberg; Henry Holt and Company, Nova Iorque, 1996, p. 24).

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Joseba Sarrionandia

 O que acontece no mundo



Às vezes
no jornal
lê-se
o que acontece no mundo
e acredita-se que
o que acontece no mundo é
tudo o que acontece no mundo.
Às vezes
o vento colhe
as folhas do jornal e,
como se fossem bandeiras,
agita-as, dobra-as, desdobra-as,
desordena-as, enruga-as, baralha-as
e destroça-as.



(Versão minha a partir da tradução do autor do basco para o espanhol incluída em La poesía está muerta; edição bilingue basco/espanhol; selecção de Eva Linazasoro; Passsiela, Arre, 2016, p. 239).

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Abe Gubenaya

As escrituras enquanto crime



A Bíblia revelou-se maligna, porque nos ensinou o bem.
O anjo converteu-se num demónio, porque anunciou a verdade.
O mal prosperou e os justos entraram em bancarrota.
Enquanto os bêbedos se sentavam à sua volta, o homem sedento
tornou-se num alcoólico. Tudo mudou, como se não tivesse existido.
O inesperado aconteceu e o que se esperava nunca chegou.



(Versão minha a partir da tradução inglesa incluída em Songs we learn from trees - An anthology of ethiopian amharic poetry; selecção/organização de Chris Beckett e Alemu Tebeje; Carcanet, Manchester, 2020, p. 82).

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Três poemas populares etíopes

 Laranjas e limões


Ela era uma mulher muito bela, como uma laranja
- Mas depois tornou-se num limão... Estranho!



***


Os joelhos dos chacais


Deixem-me partir os joelhos aos chacais
- Não me importo de pagar as custas dos tribunais.



***


Vocês, burrocratas


Não ousem atravessar o meu portão, vocês, burrocratas
- Vou atirar-vos ao fogo, como se faz às ratas.



(Versões minhas; originais incluídos em Songs we learn from trees. An anthology of ethiopian amharic poetry; selecção/organização de Chris Beckett e Alemu Tebeje; Carcanet, Manchester, 2020, p. 18 e p. 23).


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Ali Abuminah

Remorsos a caminho do aeroporto



Nunca enchi a minha mala com retalhos de céu,
Nem perdoei à cebola nua por me ter feito chorar,
Nem vesti o deserto recém-nascido com o sinal de nascença no meu olho,
Nem criei um milhar de vozes com a quietude do meu suspiro.
E não porque não pudesse, mas porque nem sequer tentei.



(Poema incluído na antologia What have you lost?; selecção de Naomi Shihab Nye, Greenwillow Books / HarperCollins, Nova Iorque, 2001, p. 149).

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Bruce Bennett

 Os mais altos conseguimentos



      Um homem tem cada vez menos que dizer,
e di-lo cada vez melhor.

      "Em breve", exulta ele, "Não terei
nada para dizer, e di-lo-ei
na perfeição."



(Versão minha; poema incluído na antologia What have you lost?; selecção de Naomi Shihab Nye, Greenwillow Books / HarperCollins, Nova Iorque, 2001, p. 65).


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Tony Hoagland

 A pergunta


                "We are what is missing from the world"
                                                    Fernando Pessoa


Certas perguntas não têm resposta.
Depois de colocadas ficam suspensas na mente
Como bocas abertas, cheias de alguma coisa que se perdeu.
O grande poeta português, Pessoa,
Disse que a ideia de felicidade
É o que nos conduz a uma permanente tristeza.
O corpo, ao imaginar a alma,
Vê-se como horrível diante de si mesmo.
Um homem ouve uma palavra, e o mundo
Torna-se num sítio que ele não compreende.
De modo que, coberto de vergonha
Pelo que não sabe, ele ascende até à sua vida
E recusa-se a descer.

Se o pudéssemos convencer de novo
Seria possível dizer-lhe, digamos,
Que nada pode ser explicado.
A forma das maçãs, por exemplo,
Pela sua paixão de viajar.
Ou a cor azul do céu
Por ser mais acessível aos olhos.
Até o cão, ao perseguir a cauda,
Tem, durante algum tempo, um centro.
E mesmo o pássaro, quando desaparece no seu buraco,
Sabe que o mundo prossegue sem ele.
E Pessoa, esse homem eminentemente sadio,
Esse artista, usava um chapéu azul de feltro
Até nos dias mais quentes de verão.
Apenas para o atirar aos estranhos na rua.
Gostava de os ver a apanharem-no,
E a tornarem-se imediatamente menos estranhos.



(Versão minha; original incluído em What have you lost?; selecção de Naomi Shihab Nye, Greenwillow Books /HarperCollins, Nova Iorque, 2001, pp. 124-125).



terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Miguel d' Ors

 A cotovia de Shelley


                                      Traduzido de Thomas Hardy


Em algum lugar olvidado, longe daqui,
entregue a uma terra esquecida e cega,
jaz o que inspirou o canto de um poeta:
um montinho de pó ignorado e perdido;

o pó da cotovia que Shelley escutou
e que imortalizou sobre todos os tempos
- ainda que tenha vivido o mesmo que outro pássaro
qualquer e não tenha sabido da sua imortalidade -.

Viveu a sua leve vida, e caiu um dia
- apenas uma porção de penas e ossinhos -,
e como pereceu, quando cantou a sua despedida
ou onde se desfez são coisas ignoradas.

Talvez repouse neste barro que contemplo agora,
talvez palpite no verdor de alguma murta
ou durma na cor emergente de uma baga
das ladeiras de uma paisagem remota.

Ide procurá-la, fadas, e trazei
essa pisca de pó inestimável,
e fazei de prata um cofre guarnecido
com ouro e pedras preciosas engastadas,

e nele guardaremos, preservada,
e para sempre a veneraremos
porque permitiu que um bardo conquistasse,
com pensamento e música, as alturas do êxtase.



(Versão minha; poema incluído em La imgen de su cara, Editorial Comares, Granada, 1994, pp. 46-47).

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

José Agustín Goytisolo

 Agravo público



O General foi um homem odiado
e aqui continua ainda a sua estátua equestre:
é revoltante, e não pela sua crueldade,
antes porque nunca montou a cavalo.



(Poema incluído por José Luis García Martín em Poesís española: 1982-1983. Crítica y antología; Hiperión, Madrid, 1983, p. 168).


domingo, 3 de janeiro de 2021

Janet Frame

 Sou invisível


Sou invisível.
Sempre fui invisível
como a pobreza num país rico,
como os ricos nos seus quartos escondidos nas suas casas com muitos quartos,
como as pulgas, os piolhos, como o que cresce debaixo da terra,
os mundos para além do céu, o vento, o tempo, as ideias -
o catálogo da invisibilidade é inesgotável
e, dizem, não é boa poesia.

Como as decisões.
Como qualquer outro lugar.
Como as instituições afastadas da estrada que se chama Scenic Drive.

Chega de comparações. Sou invisível.
Num mundo cheio de gente com visão binocular feitas as contas faço parte da maioria
enquanto tu e eu caminhamos com a nossa pequena lua crescente visitando a nossa obscuridade pessoal
através de um mundo no qual as decisões de ser ou não ser
são controladas pela luz
assistidas pelas lágrimas e o sonho da desatenção ou a morte.

Sou invisível.
Os amantes atravessam a minha vida para se tocarem,
a chuva que cai sobre mim atravessa-me como sangue sobre a terra.
Nenhuma cabeça me concebe como conhecimento.
Para dizer a verdade,
outorgo liberdade àqueles que dançam.
Assim é. Não há ninguém aqui para observar nem escutar dissimuladamente,

e então aprendo mais do que tenho direito a saber.



(Versão minha a partir do original e da tradução espanhola de Irene Artigas incluída em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Óscar Ayla; introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, pp. 199-200).