Eu nunca fui capaz de rezar
Guia-me até ao porto
onde o farol jaz abandonado
e a lua range nas vigas de madeira.
Deixa-me ouvir o vento chamar por entre as árvores
e ver as estrelas irromperem, uma a uma,
como os rostos esquecidos dos mortos.
Eu nunca fui capaz de rezar,
mas deixa-me gravar o meu nome
no livro das ondas
e depois olhar intensamente a cúpula
de um céu que não tem fim
e ver a minha voz navegar pela noite dentro.
(Versão minha; o original pode ser lido aqui).
quinta-feira, 28 de junho de 2012
sábado, 23 de junho de 2012
Wendy Videlock
Desarmada
Eu devia ser determinada e firme,
eu sei que devia, e mostrar uma cara feia;
mais uma vez falhaste na limpeza do teu quarto.
E não é só isso, também as provas
do saque da meia noite na tua cama -
cascas de amendoins partidas e m&m's
esmigalhados no sítio onde pousaste a cabeça
e, um pouco acima, o parapeito
está sobrelotado com uma girafa verde
(que espreita através do teu telescópio),
peças de dominó e um copo meio cheio
de sumo de laranja. Minha criança esfomeada,
como posso eu sentir-me desencantada com tudo isto,
este teu mundo secreto, esta tua maravilhosa desarrumação?
Eu devia ser determinada e firme,
eu sei que devia, e mostrar uma cara feia;
mais uma vez falhaste na limpeza do teu quarto.
E não é só isso, também as provas
do saque da meia noite na tua cama -
cascas de amendoins partidas e m&m's
esmigalhados no sítio onde pousaste a cabeça
e, um pouco acima, o parapeito
está sobrelotado com uma girafa verde
(que espreita através do teu telescópio),
peças de dominó e um copo meio cheio
de sumo de laranja. Minha criança esfomeada,
como posso eu sentir-me desencantada com tudo isto,
este teu mundo secreto, esta tua maravilhosa desarrumação?
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Begoña Paz
A Branca de Neve envelhece
Nunca imaginei
cabelos brancos
no meu
púbis.
Nunca imaginei
cabelos brancos
no meu
púbis.
(Versão minha; original reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generación blogger; selecção de David González, prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby Editores, Madrid, 2010, p. 271).
segunda-feira, 18 de junho de 2012
Vasyl Holoborodko
[Detestáveis sementes de erva...]
Detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
Depois de tudo morreremos uma vez,
não somos eternos nem imortais (a matéria não desaparece
em contrapartida nós sim: eu, tu, ela, a amante, o irmão, os outros),
e qualquer semente de erva: de tomilho, sinuosa como uma áspide,
espera a nossa morte (morreremos uma vez)
para se fundir com o nosso corpo alheio exangue
(no qual fomos nós: o meu, o teu, o dele, da amante, do irmão, dos outros)
e crescerá e florescerá e dará sementes
para aguardarem então a morte dos demais (não a nossa),
porque as sementes de erva são imortais, porque são sementes de erva.
Detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
Detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
Depois de tudo morreremos uma vez,
não somos eternos nem imortais (a matéria não desaparece
em contrapartida nós sim: eu, tu, ela, a amante, o irmão, os outros),
e qualquer semente de erva: de tomilho, sinuosa como uma áspide,
espera a nossa morte (morreremos uma vez)
para se fundir com o nosso corpo alheio exangue
(no qual fomos nós: o meu, o teu, o dele, da amante, do irmão, dos outros)
e crescerá e florescerá e dará sementes
para aguardarem então a morte dos demais (não a nossa),
porque as sementes de erva são imortais, porque são sementes de erva.
Detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida em Poesía ucraniana del siglo XX - Una icinografia del alma; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech, Litoral/Edições UNESCO, Torremolinos/Málaga, 1993, p. 174).
quarta-feira, 13 de junho de 2012
Ester García Camps
Identidade
esta tarde,
enquanto a telefonista
soletra os meus dados pessoais
do outro lado
do auricular,
tenho de lhe lembrar
que ester
é ester
mas sem h.
que Camps é como Campos
mas em valenciano
e que, além disso,
esse é o meu segundo
apelido,
o primeiro é García
com acento no i.
é importante
não esquecer o meu nome
uma pessoa tem de poder dizer
quem é
mesmo que na realidade
não o saiba ainda.
esta tarde,
enquanto a telefonista
soletra os meus dados pessoais
do outro lado
do auricular,
tenho de lhe lembrar
que ester
é ester
mas sem h.
que Camps é como Campos
mas em valenciano
e que, além disso,
esse é o meu segundo
apelido,
o primeiro é García
com acento no i.
é importante
não esquecer o meu nome
uma pessoa tem de poder dizer
quem é
mesmo que na realidade
não o saiba ainda.
(Versão minha; original reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generacíón blogger; selecção de David González; prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby, Madrid, 2010, p. 58).
sexta-feira, 8 de junho de 2012
Xhevahir Spahiu
Acordar tarde
Acordar tarde significa
Encontrar as flores sem orvalho, as pétalas caídas.
Acordar tarde significa
Que o amor deixou para trás uma marca indistinta.
Acordar tarde significa
Que a morte assinou longamente os teus documentos.
Mas acorda ainda assim.
Acordar tarde significa
Encontrar as flores sem orvalho, as pétalas caídas.
Acordar tarde significa
Que o amor deixou para trás uma marca indistinta.
Acordar tarde significa
Que a morte assinou longamente os teus documentos.
Mas acorda ainda assim.
(Versão minha a partir da tradução inglesa de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 213).
terça-feira, 5 de junho de 2012
Karmelo C. Iribarren
A condição urbana
Para Roger Wolfe
Detesto autocarros. A boa
educação que nos obriga
a ceder os lugares sentados
a essas senhoras
que até que se sentem
pode dar-lhes
qualquer coisa fatal.
Os empurrões. Os cheiros. Que ninguém
fume e tenhamos de aguentar
todos os pormenores
do enfarte
que deu a não sei quem.
Os anúncios publicitários
nas partes laterais.
As travagens. E muitas
outras coisas que agora calo
porque desço aqui.
(Versão minha; original reproduzido em Seguro que esta historia te suena - Poesía completa (1985-2005), Renacimiento, Sevilha, 2005, p. 37).
Para Roger Wolfe
Detesto autocarros. A boa
educação que nos obriga
a ceder os lugares sentados
a essas senhoras
que até que se sentem
pode dar-lhes
qualquer coisa fatal.
Os empurrões. Os cheiros. Que ninguém
fume e tenhamos de aguentar
todos os pormenores
do enfarte
que deu a não sei quem.
Os anúncios publicitários
nas partes laterais.
As travagens. E muitas
outras coisas que agora calo
porque desço aqui.
(Versão minha; original reproduzido em Seguro que esta historia te suena - Poesía completa (1985-2005), Renacimiento, Sevilha, 2005, p. 37).
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