sábado, 30 de abril de 2022

Mario Vega

 Diante do túmulo do corpo amado



A vida não é como nos contaram,
porque viver é estar sempre em guerra
e morrer dói menos.
E aquele que apostou no amor, desconhecendo
como passam os dias
paga cara a sua farsa.
Do seu desprezo ficam ruas tristes
e uma cidade distante como um domingo inglês.
Não se pode servir dois tiranos
que oferecem como dom e maldição
sombras da memória.

Se uma parte desta dor pode atingir-te
escuta-me e prossegue com a tua aventura,
seja cinza ao vento ou brasa soterrada.
Eu permaneço aqui
imóvel, silencioso, imerecido.

Tu cada vez mais distante da morte,
eu cada vez mais longe da vida.



(Versão minha. Fonte: Los últimos del XX - Antología de poesía (1980-1997); selecção de Miguel Munárriz; Luna de Abajo, Oviedo, 2020).

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Linda Gregg

 O verão numa cidade do interior



Quando me abandonam,
os homens deixam-me num qualquer lugar maravilhoso.
É sempre no fim do verão.
Ao pensar neles,
lembro-me dos lugares.
E do facto de me sentir só e feliz depois.
Desta vez foi em Clinton, Nova Iorque.
Dou as minhas braçadas na piscina pública
às seis da tarde, quando toda a gente
já foi para casa.
O céu está cinzento, o ar quente.
Percorro o caminho de regresso através da relva cortada,
deliciando-me com o seu cheiro e com as casas
de um modo tão intenso que fico de coração vazio.



(Versão minha. Fonte: aqui).

terça-feira, 19 de abril de 2022

John Smelcer

 O urso polar

(Ilha de Flaxman, Oceano Ártico, 1982)



Uma vez, quando eu era jovem,
aconteceu-me uma coisa extraordinária.

Remava junto à margem no meu caiaque
quando vi um urso polar sentado no gelo

à procura de alimento. Era um urso enorme.
Saltou para dentro de água e começou a perseguir-me.

Talvez tenha pensado que eu era uma foca gigante.
Nadou três vezes à volta do meu caiaque.

Bati-lhe com o remo e gritei-lhe,
"Vai-te embora! Deixa-me em paz!"

Por fim ele decidiu voltar para terra.
Devo ter sido abençoado por algum corvo.

E nisto consiste a minha história. Seja como for,
agora quero falar de uma coisa completamente diferente.



(Versão minha. Fonte: Modern Poetry in Translation (War of the Beasts and the Animals - Russian and Ukrainian Poetry; 2017, nº 3, p. 59).

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Li Bai (701 - 763)

 Gracejando com Du Fu



No topo da montanha Fan Ko
está Du Fu sob o sol do meio-dia
com o seu enorme chapéu de camponês.

Emagreceste tanto 
desde a última vez que nos vimos!... Porquê?
Não me digas que estás de novo doente de poesia!



(Versão minha. Fonte: Li Bai, Recostado sobre las nubes; tradução, prólogo e epílogo de Martín López-Vega; Impronta, Gijón, 2020, p. 54).

sábado, 9 de abril de 2022

Vasyl Holoborodko

 Bisonte de um só corno


                                    "A ceifar os verdes campos dos cereais
                                      A minha mãe me mandava."
                                                   Canção popular


Da escura caverna 
que era a vida
saía o bisonte de um só corno 
que foi o arado
e lançava-se sobre a mulher 
que era fértil
até a deixar extenuada - 
como a terra cultivada...

Ferida pelo corno do bisonte 
que era o arado
a mulher achava-se estendida 
no campo -
e contemplava as flores - 
as rubras papoilas.

Penetrou o bisonte de um só corno 
que foi o arado
na escura caverna 
que era a vida.



(Versão minha. Fonte: Una iconografía del alma - Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral/Edições UNESCO, Málaga, 1993, p. 181).

terça-feira, 5 de abril de 2022

Juan Antonio González Iglesias

 Escuto a água limpa


                              Para Victor Herrero de Miguel


Escuto a água limpa
que desce da montanha depois da chuva,
o gorjeio do pássaro
na tarde
primaveril de outubro,
a resposta de 
cada coisa a cada coisa. Caem
folhas sobre a terra como frutos.

Não acredito
que a névoa de ontem,
o sol de hoje,
esta chuva de agora,
este aroma sem preço
sejam só para mim.



(Versão minha. Fonte: Confiado; Visor, Madrid, 2015, p. 49)