terça-feira, 13 de setembro de 2022

Pablo Fidalgo Lareo

Paciências



Aluguei um quarto no bairro de Santos
para passar o inverno mais frio da minha vida.
A dona da casa não fazia senão paciências.
Santos era a terra da infância.
Meninos do rio. A casa está no mar.
O comboio é uma máquina de um  mundo superior
que arrasa tudo o que fui.

Amo as pedras da rua, o modo como se resvala com a chuva,
como a cidade foi feita sem se pensar em ninguém.
No 25 de abril alguém deu ordem de disparar a um soldado
mas ele não a cumpriu e evitou uma guerra.
Amo a águia do Benfica
ao dar a volta ao estádio antes de cada jogo.

Como dizê-lo? Nada me prende a esta margem.
Se vir aqui um pouco de ódio que seja
irei para o outro lado e começarei de novo.
Se alguma vez fizer um amigo
dir-lhe-ei como é a minha terra natal
para o assustar e manter à distância.
Com o tempo aprendi que um pouco de ódio
é o início de todo o ódio.

Isto é Lisboa. Perguntam-me por que vim para cá
e isso é ir demasiado longe.
Se queres saber por que vim
deixa-me ver-te com os que nada têm.
Entra no jogo de perder tudo como eu entrei.
Isto é Lisboa: a cidade onde hei-de escrever
o livro alucinado que sempre quis escrever.

Sei que esta é a única margem
por isso ponho-me a olhar o rio sem pensar
que a minha presença aqui é uma vingança.
Penso que o que amo é a vida dupla
que todos tiveram em África e Portugal.
Também para mim se acabou.

Lembras-te do tempo do primeiro escândalo
quando parecia impossível que houvesse outro e depois outro?

Alguém disse vergonha só de fazer coisas más.
Isto não faz parte da minha vida, eu vim para ficar.
E tu, vês as palavras a saírem do rio, a baterem 
contra as águas do mar?

Habito num lugar da margem
onde podes beber quanto quiseres
sem que ninguém diga nada.
E tu, o que sentes quando me vês navegar
neste rio inavegável?


(Versão minha; original algures aqui)