domingo, 15 de outubro de 2023

Museu da Angústia Natural


Mais informações aqui.

 

domingo, 23 de julho de 2023

Enterrados no Jardim (episódio 17)

Uma conversa com Joana Emídio Marques e Diogo Vaz Pinto:

domingo, 7 de maio de 2023

Cristina Peri Rossi

Oito poemas



Tenho uma dor aqui,
                                 do lado da pátria.


***


A poesia verdadeira exclui a sinceridade
no sentido banal
mas jamais admite a hipocrisia.


***


Futuro


Gostaria muito
de viver no próximo século
quando a felicidade
for uma pequena pílula
a ingerir
antes das refeições.


***


Monólogo


A vida não tem sentido. Para quê procurá-lo?
Se a vida não tem sentido
muito menos o terão o êxito ou o fracasso
ser amado ou detestado
ter bons vizinhos ou vizinhos xenófobos
o aplauso ou a vaia
Não importa se tens a conta no vermelho no Banco
Nem se apareces numa enciclopédia
De acordo. A vida não tem sentido,
mas ainda assim
emociona-me.


***


Campa


Gostava que a minha campa estivesse num parque
- não muito longe de outras campas -
cheio de pássaros
e de crianças a brincar na relva.
Um esquilo poderia pisá-la
ou um balão cheio de ar sobrevoá-la.
E gostaria também que
aos sábados à tarde
viesses conversar comigo.


***


Adições


Todos somos dependentes de alguma coisa.
Entre dose e deus só
há um o e um u de diferença.


***


Religiões


Não gosto do monoteísmo
nem da monogamia
Entre os vários deuses
é possível encontrar um benevolente
e entre os diversos amores
é possível encontrar um verdadeiro.


***


A melancolia da literatura


Disse-me então: tenta escrever algo
alegre,
algo reconfortante,
algo que possa ajudar uma pessoa
que tem cancro ou que foi atropelada por um carro

Pus-me a pensar
Pensei durante uma tarde inteira
e não me ocorreu nada de alegre
ou estimulante

Isto foi o que se deve ter passado com Shakespeare
e com Dostoievski,
com Proust e Kafka

por isso as pessoas não lêem
Só os deprimidos lêem
para confirmarem a sua depressão.



(Fontes: Poesía reunida, Lumen, 2ª edição, Barcelona, 2009. Playstation, Visor, Madrid, 2009).


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Anna Swir

 (Dez poemas)



Depois de um ataque aéreo


Saindo de um monte de destroços
dirigindo-se para o céu
cinzenta como uma parede
uma mão com cinco dedos.



***


Natureza morta


Num charco de lodo e sangue,
entre o corpo meio carbonizado de um cavalo
e o corpo meio carbonizado de um homem,
ao pé de uma conduta de esgoto destruída, um sofá com franjas, uma chaleira
e três pedaços de vidro partido,
jaz o fragmento de uma carta de amor, queimado nas margens:
"Sou tão feliz."



***


Terra e Céu


Havia aqui tantas coisas a gritar
os aviões gritavam e o fogo e a desolação
o ataque gritava
até às nuvens.

Agora a terra e o céu
estão em silêncio.



***


Estou cheia de amor


Estou cheia de amor
como uma grande árvore de vento,
como uma esponja de oceano,
como uma grande vida de sofrimento,
como o tempo de morte.



***


O meu sofrimento


O meu sofrimento
é útil para mim.

Dá-me o privilégio
de escrever sobre o sofrimento de outros.

O meu sofrimento é o lápis
com que escrevo.



***


Não posso


Invejo-te. A qualquer momento
podes deixar-me.

Eu não posso
deixar-me.



***


Protesto


Morrer
é o mais duro
de todos os trabalhos.

Velhos e doentes
deveriam estar isentos dele.



***


Isso não seria nada bom


Quando estou só
tenho medo de me virar
demasiado depressa.

O que está nas minhas costas
pode, no fim de contas, não estar preparado
para assumir uma forma adequada
para olhos humanos.

E isso não seria nada bom.



***


Quatro patas muito gordas


Sinto-me alegre como se fosse
muito gorda.
Como se tivesse quatro
pernas muito gordas. Como se saltasse muito alto
com as minhas quatro pernas muito gordas.
Como se ladrasse
alegremente e muito alto
com essas quatro pernas muito gordas.
Eis quão alegre me sinto hoje.



***


Ansiedade


Fazes entre as árvores
um ninho para o nosso amor.
Mas repara nas flores
que esmagaste.




(Fontes: 1) Talking to my body; tradução de Czeslaw Milosz e Leonarda Nathan, Copper Canyon Press; Washington, 1996; 2) Construyendo la barricada y otros poemas; tradução de Édgar Trevizo; Medusa, Chihuahua, 2021).

domingo, 5 de março de 2023

Ángel González

5 dos últimos poemas



Sempre a esperança


Esperar a desgraça
é uma forma de esperança?
Para todos os efeitos, a menos perigosa.
Aquela que nunca nos pode defraudar.


***


Leio poemas


Leio poemas ao calhas,
leio quase sem pensar no que leio.
Quando me encontro com um verso triste
sinto uma espécie de carícia na alma.
Não é que a tristeza alheia me alivie;
acontece que me sinto menos só.


***


Tem de se ser muito corajoso


Tem de se ser muito corajoso para se viver com medo.
Ao contrário do que se julga habitualmente,
o medo nem sempre é um assunto de cobardes.
Para viver morto de medo
é preciso ter, de facto, muito valor.


***


Nem só o poeta é um fingidor


Eu sou um fingidor; eu, não o poeta.
Agora fala o homem:
Sim, sou um fingidor.
Observem o meu sorriso.


***


O poema dos 82 anos


Passou quase um século.
Sou um cavalheiro muito antigo.
Ou melhor,
o que subsiste de um cavalheiro:
uns restos 
desbotados,
algum gesto
que pretende ser cortês.
É pouco, mas é alguma coisa.

Dizem que águas passadas
não movem moinhos.
Mas o rio da vida
que passou
continua a moer-me vivo,
reduzindo-me a pó
apaixonado
pela água,
por aquela água
cujo murmúrio distante
o meu coração ainda escuta.



(Fonte: Nada grave, Visor, Madrid, 2008).


domingo, 1 de janeiro de 2023

Amalia Bautista

 5 POEMAS



Borboleta-monarca



Entrou no pátio como quem cai num poço.
As suas asas bateram nas janelas
que entrincheiravam outras vidas.
Aqueles que faziam amor,
cozinhavam, dormiam, discutiam
ou amamentavam os filhos
não deram por ela.
Não conseguiu ascender, voava em círculos,
perdida e longe da sua rota,
longe dos seus pares, sem saber
que o grupo garante a sobrevivência.
No fim pôde escapar para o céu aberto,
talvez para morrer num ramo
no parque mais próximo.


***


O homem que caminha



O homem que vejo agora a andar pelo passeio
é o homem que não sei se vai ou vem.
Se chegará aqui,
se vem para partir ou talvez para ficar,
se é que vem.
Caminha de perfil, como um egípcio,
e por isso não identifico o sentido dos seus passos.
Para mim ou para longe.
Para mim ou para nunca.
Eu poderia esperar
ou descer à rua e pôr-me à sua frente.
Mas, feitas as contas, para quê
se nunca suportei os indecisos.
Fechei a minha porta dando duas voltas à chave.


***


Canto das espigas




Não cantam, isso são fantasias
dos que nunca trabalharam no campo.
São mentiras piedosas revestidas com um verniz piegas
que os artistas ou os parolos inventam,
se é que eles não são os mesmos.
Suponho que aquilo que as espigas fazem
são cortes nas mãos,
mas das feridas que sangram não se fala.


***


As boas intenções



Esta manhã saí de casa
com várias intenções, todas muito firmes:
a de devorar o mundo,
a de me tornar invulnerável
ou invisível,
de acordo com as circunstâncias,
a de negar tudo o que quero negar,
a de me afirmar.
E mais uma ainda, acima das outras,
acima de todas:
procurar-te e dizer-te que te amo.
Mas não te encontrei.


***


Lisboa



Sardinhas e azulejos,
eléctricos amarelos, calçadas onduladas
com paralelepípedos escorregadios
e o teu olhar.
Livrarias e fados
e castanhas assadas.
Uma língua mais doce e mais profunda,
e também mais triste,
e a tua língua.
O Tejo, que já é mar
e ferida e janela.
A nossa idade que avança
e a espantosa e estranha juventude
que tornamos presente ao fecharmos a porta.
O nosso amor renovado
e pastéis de nata.



(Versões minhas; fonte: Azul el agua; La Bella Varsovia, 2ª edição, Barcelona, 2022).