quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Rafael Alberti

 [Os quadros dormem?...]



Os quadros dormem? Dormem? Se eu entrar
sigilosamente, esta noite, no museu,
dormirás tu, duquesa sem vestido?
E tu, Diana, a do seio descoberto ao ar,
fugirias comigo para os jardins?


***


[A estas horas em Roma...]


A estas horas em Roma e em uníssono
a cantar despertávamos sempre
um melro e eu.
Chegada já a luz ele lançava-se em voo
da escura laranjeira daquele pátio,
eu dos meus solitários lençóis,
para, os dois, nos perdermos,
cada um por si,
já no interior do dia.


***


[Chove no comboio]


Chove no comboio.
A chuva é uma viajante.
Vai viajando nos vidros, só.
De súbito, irrompe o sol.
E a chuva desce num qualquer povoado.


***


[A lua já se vai...]


A lua já se vai, pequena, só, triste,
por entre as nespereiras.



(Versões minhas; os poemas originais foram incluídos por José Luis García Martín em Poesía española: 1982-1983 - crítica y antología; Hiperión, 1983, Madrid, pp. 151-152).

sábado, 12 de dezembro de 2020

Maran al Masri

[Tenho medo de morrer...]



Tenho medo de morrer
sem escrever um poema belo,
sem me reconciliar com quem me aflige,
tenho medo de morrer com a roupa interior suja.

Tenho medo de morrer sem oferecer os presentes que guardo no armário,
tenho medo de morrer sem dar todo o meu amor aos que amo
aos meus irmãos
aos meus filhos
aos meus netos
ao homem que ame verdadeiramente.

Tenho medo de morrer com um beijo na boca
tenho medo de morrer
sem ver a paz na Síria.



(Versão minha a partir da tradução de António Martínez Castro incluída na Antología de poesía femenina contemporánea, organização de Virginia Fernández Collado, Fondo Kati, 2ª ed., p. 221).



domingo, 6 de dezembro de 2020

Kayal Ahmad

 Não quero flores



Não quero flores,
nenhum tempo de união,
nenhum amanhecer de desunião.
Não quero flores
porque eu sou a mais bela flor.
Não quero beijos
se por uma boneca verdadeira
tenho de suportar um qualquer homem  -
nenhum tempo de casamento,
nenhum amanhecer de divórcio,
nenhuma febre de viúva.
Não quero beijos
se, ao longo do amor, me converto em mártir.
Não quero lágrimas
sobre o caixão ou sobre mim, o cadáver.
Não quero uma cerejeira de simpatia
agarrada às paredes do meu túmulo,
nem beijos, nem flores,
nem lágrimas ou desgraças.
Nada trazer.
Nada manter.
Morro como uma pátria sem bandeira, e sem voz.
Estou agradecida.
Não quero nada.
Não aceitarei nada.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Mohsen Emadi, incluída na Antología de poesía femenina contemporánea; organização de Virginia Fernández Collado, Fondo Kati, 2ª edição, p. 195).

domingo, 1 de novembro de 2020

Scott Wiggerman

 Johnsburg



No alto da colina, uma igreja
católica e a sua torre, com pináculos góticos,

mais abaixo, uma estação de serviço com uma bomba,
um belo salão com uma janela panorâmica,

na cidade um só sinal de stop para quatro vias,
uma loja de conveniência, a montra com bicicletas,

e três tascas encharcadas de fumo,
os seus balcões da mesma madeira sólida

de que são feitos os bancos duros da igreja,
só que mais gastos, mais polidos.



(Versão minha; original aqui).

domingo, 25 de outubro de 2020

Raúl Gómez Jattin

Daquilo que sou



Neste corpo
no qual a vida já anoitece
vivo eu
O ventre flácido e a cabeça calva
Poucos dentes
E eu cá dentro
como um condenado
Cá dentro e apaixonado
e velho
Decifro a minha dor com a minha poesia
e o resultado é especialmente doloroso
vozes que anunciam: aí vêm as tuas angústias
vozes quebradas: os teus dias já passaram

A poesia é a única companhia
habitua-te às suas facas
pois é a única



(Versão minha; original reproduzido em Sueños de lirios. Antología de poetas locos; organização de Óscar Ayala, introdução de María Castrejón; Huerga & Fierro, 2018, p. 222).


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Atukuri Molla (século XVI)

 [Tal como o mel...]



Tal como o mel
nos deleita no instante
em que o levamos à boca
um poema terá de se entender
à primeira.
Sons e sentidos pouco claros
não dizem muito mais do que um mudo
diz a um surdo.



(Versão minha a partir da tradução castelhana incluída na antologia En qué estabas pensando? Antología de Poesía Devocional de la India, Siglos V-XIX; organização e tradução de Jesús Aguado, Fondo de Cultura Económica, Madrid, 2017, p. 272).



sábado, 10 de outubro de 2020

Valeri Mikháilov

 O vinho



Homero era cego e bebia o que lhe ofereciam:
Vinho simples diluído com água,
As musas amaram-no firmemente
Pela sua moderação.

Sócrates era mais sábio que todos os outros,
Só sabia que nada sabia.
Bebia aos poucos, nunca ficava bêbado,
Só bebeu até ao fundo a sua cicuta.

Omar Khayyam era um bêbado famoso.
Mas só nos versos, não na realidade.
Pelo que Alá concedeu-lhe uma coroa digna
E encheu os seus dias de alegria.

Logo chegaram outros tempos:
Apareceu o álcool, serpente de olhos verdes,
Rimbaud e Verlaine beberam como loucos,
Baudelaire não parava e delirava com demónios.

A Europa sacudia a nossa barca,
E até a Rússia começou a beber.
Como um inimigo, Yesenin aniquilava a vodka,
O rei do vinho arrastou Blok.

E do nosso século o melhor é não falar.
Todos bebem até à morte,
Como se fosse a derradeira batalha.
Pelos vistos ninguém teme o Juízo Final,
Mas este já não está longe...


[2007]



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Alexandra Cheveleva Dergacheva e Iván Martín Cerezo incluída na Antología de la poesía moderna en Kazajstán, Visor, 2019, p. 127).


domingo, 4 de outubro de 2020

Olzhás Suleiménov

[Houve mulheres no meu ombro...]
 


Houve mulheres no meu ombro,
houve mulheres no meu peito.
Mas no meu coração
houve só uma.
No meu coração simplesmente, apenas uma.
Tudo lhe cai bem:
a tristeza nos olhos,
os cabelos sedosos,
a boca dura e caprichosa,
o gelo desnudo dos dentes,
o suave rumor dos dedos,
e a sua estatura adolescente,
os seus trinta e quatro anos de idade.
Tudo lhe cai bem.
Que bem que lhe cai tudo!...



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Joaquín Torquemada Sánchez incluída na Antología de la poesía moderna en Kazajstán; Visor, Madrid, 2019, p. 75)

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

F. Scott Fitzgerald

 Princeton, o último dia



A luz derradeira flutua e declina sobre a terra,
A terra ampla e rasa, a terra radiante dos pináculos.
Os fantasmas da noite afinam de novo as liras
E erram, cantando, numa melancólica banda
Ao longo dos extensos corredores de árvores. Fogos pálidos
Ecoam pela noite de torre em torre.
Oh sono que sonha e sonho que nunca se cansa,
Retirai das pétalas da flor de lótus
Alguma coisa de tudo isto, a essência de uma hora!

Já nada se pode esperar da luz crepuscular da lua
Neste vale sequestrado por estrelas e pináculos;
Para nós, a eterna manhã do desejo
Perde-se no tempo e na tarde terrena.
Aqui, Heráclito, construíste com fogo
E coisas mutáveis a tua profecia atirada para longe,
Para os anos desaparecidos; nesta meia-noite desejo
Ver, reflectidos nas brasas, enredados
Nas chamas, o esplendor e a tristeza do mundo.



(Versão minha a partir do original e da tradução castelhana de Jesús Isaías Gómez López incluídos em Sueños de Lirios - Antología de poetas locos; selecção de Oscar Ayala; introdução de María Castrejón; Huerga & Fierro, Madrid, 2018).


sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Kadyr Myrzá Alí

Os nossos ancestrais



Dizem: os nossos antepassados, que viviam a vida
Como se caminhassem sobre as chamas,
Tinham coisas boas e más:
O que era mau, andavam sem cessar em transumância,
O que era bom, as estepes livres maravilhavam-nos.
O que era mau, deixavam-se levar pela má-língua,
O que era bom, a sua linguagem era rica e cheia de matizes.
O que era mau, não sabiam usar a enxada,
O que era bom, sendo bons atiradores,
Manejavam com perfeição as suas lanças.
O que era mau, aprenderam tarde a ler e a escrever,
O que era bom, criaram belas kuis*.
O que era mau, vendiam as filhas em troca de gado,
O que era bom, roubavam as suas amadas.
O que era mau, não eram bons comerciantes,
O que era bom, não enganavam ninguém.
O que era mau, casavam com as noras,
O que era bom, não abandonavam as viúvas.
Com os vizinhos conviviam em harmonia.
Juntos sobreviviam ao frio, suportavam penúrias.
O mau é que não construíam casas.
O bom é que não erigiam prisões!



(*Kuis: género musical tradicional casaque estreitamente vinculado às crenças e rituais religiosos).

(Versão minha a partir da tradução castelhana de Alexandra Dergacheva e Iván Martín Cerezo incluída na Antología de la poesía moderna en Kazajstán; Visor, Madrid, 2020, p.14).

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Philip K. Dick

 Uma serpente antiga



A filosofia é uma velha teia
Abandonada há muito; Os sonhos
Que a aranha teceu no seu interior
Brilham debilmente durante a noite
E sob o sol são só isto:
Fragmentos de folhas de pavor.



(Versão minha a partir do original da tradução castelhana não assinada incluída em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Oscar Ayala, introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, p. 151)


terça-feira, 8 de setembro de 2020

Charles Dickens

 Canção das larvas de Gabriel



Maravilhosos aposentos, maravilhosos aposentos,
Uns palmos de terra fria quando a vida acabou;
Uma pedra à cabeça, outra pedra aos pés,
Um rico e suculento banquete para os vermes digerirem;
Dispõe erva por cima e argila húmida em volta,
Maravilhosos aposentos, estes, em terra santa!



(Versão minha a partir do original e da tradução castelhana reproduzida em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Oscar Ayala, introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, p. 155)

sábado, 5 de setembro de 2020

Tumanbay Moldagalíev

 O cordeiro órfão


Levo os cordeiros todos juntos num punhado
E canto uma cantilena do avô pastor.
Parece que todo o pasto segue a melodia,
Oh, cânticos, cânticos, quantos havia.
Mas um cordeiro órfão mostra-se mais assustadiço que os restantes,
Colares de lágrimas congelaram-se-lhe nos olhos.
Também ele segue para a aldeia
Em correria com os outros.
Não o perdia de vista, dava-me pena.
Era espevitado, destro, rápido como todos.
Balem as ovelhas e os cordeiros ao encontrarem-se,
Como se não se vissem há um ano, não há um dia.
Ali mesmo vai o meu órfão infeliz,
Dá um gemido e com o focinho golpeia os úberes das ovelhas,
Corre para diante o pobre, bale timidamente,
Olha-me e continua a corrida.
O pobre orfãozinho corre e bale:
Será que nenhuma mãe alguma vez o mimou?
E neste mesmo instante eu gostaria de converter-me na sua mãe,
Alegrá-lo, abrir-lhe os braços.
O dia chegou ao fim e todos os cães pastores dormem,
As estrelas do céu iluminam tudo.
E só o balido de um órfão
Se ouve uma e outra vez sob a lua.
Eu não posso bater as asas livremente,
Pesados pensamentos rasgam-me ao longo da noite.
E como um cordeirinho branco dispus-me a procurar uma mãe,
Se for preciso corro o mundo inteiro.


(Versão minha a partir da tradução castelhana de Guillermo de la Puerta, incluída na Antología de la Poesía Moderna en Kazajstán; Visor, Madrid, 2020, p. 45).

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Kadyr Myrzá Alí

Primeiro canto lírico



O invejoso morre para
Não sentir mais a sua ansiedade.
Batyr* morre na batalha
Cumprindo o seu dever.

Os bandidos morrem quando
Não conseguem sacar o punhal.
As belas morrem nos enlaces,
Afogadas na emoção.

O corcel morre na estepe.
O pó estende-se atrás dele.
O poeta morre, maravilhado,
E o seu verso não o pode salvar.



*Batyr: guerreiro épico casaque.


(Versão minha a partir da tradução castelhana de Alexandra Cheveleva e Iván Martín Cerezo incluída na Antología de la poesía moderna en Kazajstán; Visor, Madrid, 2020, p. 15).

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Raúl Gómez Jattin

Exorcismo



Os habitantes da minha aldeia
dizem que sou um homem
desprezível e perigoso.
E não andam muito enganados.

Desprezível e perigoso.
Isso fizeram de mim a poesia e o amor.
Senhores habitantes
Tranquilos
que só a mim
costumo causar dano.



(Versão minha; original reproduzido em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Óscar Ayala, introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, p. 223).

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Ivan Hobson

O nosso vizinho



Todas as famílias que viviam no nosso pátio
tinham uma carrinha de caixa aberta
com um autocolante do sindicato na traseira

e, em miúdo, eu admirava-as
tal como, julgava, os nossos soldados
deviam ter admirado Patton
e os tanques Sherman.

Uma vez disseste-me
que os russos não conseguiriam conquistar-nos,
não com cidades como as nossas,
cheias de ferro e de trabalhadores temperados
pelos fornos das fundições e das fábricas.

Não foram os russos que vieram;
foi o contrato, a greve,
as sucessivas dispensas que foram rebentando
até que chegou a tua vez.

Continuo a lembrar-me de ti
a carregares as coisas para partires,
o autocolante do sindicato raspado
com uma espátula,

as pontas da lona branca estendida
sobre a caixa da carrinha
a adejar enquanto te afastavas.



(Versão minha; original reproduzido aqui).

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Karen Head

Proximidade



O jovem gambá que anda à procura de alimento
do lado de fora da janela do meu escritório
não parece nada preocupado com a minha presença -
afinal de contas, quem foi apanhado na ratoeira fui eu.
Petisco umas amêndoas, observo-o
a mordiscar tudo o que encontra
e, embora me sinta inclinada para partilhar,
sei que a simples abertura da janela
irá mudar o mundo.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui).


segunda-feira, 27 de julho de 2020

Kabir (1440-1518)

"Colhe aqui aquilo de que precisas..."



Colhe aqui aquilo de que precisas.
Mais à frente os caminhos
estão impraticáveis.

Loucos, querem
ir ao céu fazer as suas compras.
Não sabem que no céu não há lojas
nem sequer vendedor.


***


"Tens, Amigo, a morte..."



Tens, Amigo, a morte
pousada na cabeça.
Desperta de vez!
Como podes dormir
de modo tão profundo
estando a tua casa
situada numa rua tão ruidosa?




(Versões minhas a partir das traduções castelhanas de Jesús Aguado incluídas em En qué estabas pensando? Antología de Poesía Devocional de la India, Siglos V-XIX; organização e tradução de Jesús Aguado, Fondo de Cultura Económica, Madrid, 2019, p. 207 e pp. 210-211)



quinta-feira, 23 de julho de 2020

Lal Ded (ou Lalla) (Século XIV)

Não esbanjes a tua luz...



Não esbanjes a tua luz com um idiota.
Não partilhes o teu açúcar com um burro.
Não lances as tuas sementes
à areia de um rio.
Não deites o azeite no farelo
destinado às vacas.


***

Represar a inundação...



Represar a inundação.
Apagar um incêndio desbocado.
Caminhar pelo ar.
Ordenhar uma vaca de madeira.

Qualquer vigarista pode fazer isso.



(Versões minhas a partir das traduções castelhanas de Jesús Aguado incluídas em En qué estabas pensando? Antología de poesía devocional de la India, Siglos V-XIX; organização e tradução de Jesús Aguado, Fondo de Cultura Económica, Madrid, 2017, p. 142).

sábado, 18 de julho de 2020

Kurt Brown

O beijo



Esse beijo que não fui capaz de te dar.
Como poderás perdoar-me?
O beijo que eu teria dissipado em ti ainda
Aí está, dentro de mim. Provavelmente morrerá aí.
Mas será a última parte de mim a morrer.


(Versão minha; original aqui).

domingo, 12 de julho de 2020

Marjorie Saiser

A impressão que as baleias fazem



Tu e eu apercebemo-nos no barco
da impressão que as baleias deixam,
o grande anel que os seus mergulhos desenham
durante algum tempo na superfície.
Será assim quando nos
perdermos um ao outro? Não sei
nem posso saber. Mas
quero acreditar que
quando não pudermos mais
atravessar uma sala
para um abraço, quando não pudermos
mais cair nos braços um do outro,
haverá sempre isto:
algum traço que se demora
enquanto o corpo enorme
permanece em baixo, sem se ver,
uma sombra escura e gigantesca,
um golpe de barbatana,
um corpo de deleite
a mergulhar para o fundo.



(Versão minha; original aqui)

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Robert Bly

Por que não morremos



Nos fins de setembro muitas vozes
Dizem-te que vais morrer.
Aquela folha diz-to, aquela frescura.
Todas têm razão.

As nossas inúmeras almas - que
Podem elas fazer acerca disso?
Nada. Elas são já
Parte do invisível.

A verdade é que as nossas almas
Têm estado ansiosas por voltar
A casa. "É tarde", dizem elas,
"Fecha a porta, vamos andando."

O corpo não concorda. E diz
"Enterrámos uma pequena bola
De ferro debaixo daquela árvore.
Vamos lá buscá-la."



(Versão minha. Original aqui).

sexta-feira, 3 de julho de 2020

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Manuel Vilas

A aula de língua



Abatimento em metade de uma turma de adolescentes.
Queria estar noutro sítio, mas onde.
Rico e célebre em longas viagens pelo mundo.
Também eles não cumprirão as suas ilusões.
Salta à vista: sem talento, sem inteligência,
sem família com posses, sem beleza,
sórdida classe média-baixa da democracia
a quem foi prometida uma educação intranscendente.
Ensina-lhes, ao menos, a desejar a vida
com força, com justiça, com dignidade,
com as palavras duras que a sós aprendeste.
Ajuda-os a imaginar a ruína nada discreta
em que acabarão convertidos.
Os tristes afazeres das suas vidas são já um escândalo.
Diz-lhes que só a verdade com palavras justas
defende da verdade abandonada à sua sombra.



(Versão minha; original reproduzido em Hacia la democracia. La nueva poesía (1968-2000); organização de Araceli Iravedra, Visor, 2016, p.694).

sábado, 27 de junho de 2020

terça-feira, 23 de junho de 2020

Hans Morgenthaler

Poeta na miséria



Sou o extravagante poeta Hans Morgenthaler.
Exacto! O primo de Ernest, o conhecido pintor.
Tenho restos de sopa no casaco
E gotas nasais no colarinho da camisa;
Noutras circunstâncias, vida minha, oferecer-te-ia
O meu amor, mas na minha absoluta pobreza
Não me é lícito fazê-lo.

Vivo na Suíça italiana,
Onde algumas vezes faz muito calor no verão.
Encurralado entre um rabisco
E um piano eléctrico,
Numa casa ruidosa virada a sul, abrasada pelo sol.
Estou à espera na minha vida, com uma interminável e tensa paciência,
De uma mudança favorável
Que nunca chega.

De cada vez que, para lá da persiana,
Passa um dia quente
E abro a janela, feliz, ao ar fresco da tarde,
Para trabalhar um bocadinho na minha mesa,
Ou com um cansaço de morte dormir um pouco,
Aparece um desses: um paquete, um moço de fretes ou um aprendiz de barbeiro,
Enfia uma moeda na jukebox
E começa a ouvir a endemoninhada canção Valência...

Levo uma vida de cão!
Assim nunca me curarei!
Assim se vive na Suíça livre:
Na mais terrível estreiteza e sem vender um único livro!
Ando pelos quarenta
E cada dia que passa sou mais pobre
Como se possuísse o meu próprio tesouro!

Não comi nada esta noite
E assim posso economizar algum para um envelope e um selo.
Tenho de escrever à minha nova admiradora,
Uma senhora de setenta anos
Que, salvo os portes de envio, não me custa nada
E vive num lar.



(Versão minha a partir da tradução espanhola incluída na Antología de la poesía suiza contemporánea; selecção e tradução de Manuel Jurado, Editorial Aguaclara, Alicante, 1992, pp.89-90).

domingo, 21 de junho de 2020

Adolfo Jenni

Os velhos professores



Os velhos, velhíssimos, professores
que foram brilhantes e autoritários,
agora, reformados,
arrastam pelas ruas
os corpos e os dias.
Resistem à morte
até não haver dúvidas
sobre como um ser humano pode ver deteriorados
o corpo e a mente.

Cada vez mais lentos e encurvados,
os velhos professores
quase afónicos e vacilantes,
surdos, com um sorriso pateta,
coléricos só de vez em quando,
cada vez mais desastrados dentro da roupa
com nódoas, desabotoados.
A dignidade que haviam encarnado
quando se sentavam na sua cátedra
a ensinar a juventude florescente
foi toda para o galheiro.
Não sabem já o que fazer
e procuram entreter-se com as pessoas,
com o primeiro que encontram,
ainda que seja o menos adequado
à sua condição e idade;
mas todos lhes viram as costas.

Os velhos, velhíssimos, professores
vagueiam como espantalhos do futuro
diante dos seus colegas mais jovens,
destinados a continuar, como vêem,
o caminho do ser humano.
Até eles deverão conseguir
a morte por um alto preço.



(Versão minha; poema incluído na Antología de la poesía suiza contemporánea; selecção e tradução de Manuel Jurado; Editorial Aguaclara, Alicante, 1992, pp. 62-63).

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Jonathan Greene

O retorno



Todos os anos
recuperamos o ânimo
quando as andorinhas do celeiro
regressam.

Reencontram os antigos ninhos,
e ensinam as mais novas a voar,
alinhadas no telhado do celeiro
para o seu primeiro voo.

Lembram-nos
que, por enquanto, certos rituais
desta terra generosa
perduram.



(Versão minha; original reproduzido aqui).

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Mustafa Koz

O louco da ilha



Sobrevive comendo estrelas de noite,
O dia é para ele uma casinha sem números vermelhos
Ninguém pôde até agora escravizá-lo
A sua cabeça - esse céu - está coroada com espinhos escarlates,
Sigamos as nossas pegadas na margem lamacenta
Enquanto silenciosamente abandonamos a ilha
Para irmos limpar a lâmpada empoeirada.



(Versão minha a partir da tradução castelhana incluída em Poesía contemporánea de la República de Turquía; Vision Libros; organização e selecção de Jaime B. Rosa e Metin Cengiz, Madrid, 2013, p. 102).

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Alison Luterman

Confesso



Andei a persegui-la
pelo mini-mercado: a sua coroa
de tranças imaculadas, presas na perfeição por um gancho prateado,
a sua postura direita, irradiando suavidade,
o modo como colocou os iogurtes e os abacates no cesto,
espalhando paz como a Estrela Polar.
Quis perguntar-lhe "Em que corredor encontraste
a tua serenidade, sabes como
se consegue estar casado durante cinquenta anos, ou como viver sozinho,
desculpa-me por estar a interromper, mas pareces ter
um grau de sabedoria que faz a terra arder e girar no seu eixo -",
só que nós não pedimos este tipo de informações a estranhos
nos nossos dias. Pelo que me limitei a dizer, "Adoro o seu cabelo."



(Versão minha; poema incluído na antologia Healing the divide, organizada por James Crews; Green Writers Press, Brattleboro, Vermont, 2019, p. 64).

domingo, 7 de junho de 2020

Jon Juaristi

Sinais de agradecimento

                                     A Luis García Montero



Não tenho carro
nem casa própria. Vivo só
e a minha conta corrente
está no vermelho.

Habito num frigorífico,
num frio promontório
varrido pelas turvas
ventanias do outono.

Passei a quarentena,
dobrei o meu Cabo Horn,
perdi todos os mastros
da alma nos escolhos.

Vivi em países
não especialmente exóticos,
mas do triste mundo
sei mais do que os geógrafos.

Nasci sob Saturno,
deus nocturno do chumbo.
Coube-me um tempo
inclinado para a tormenta.

A minha juventude entretém-se
com jogos perigosos.
Sigo sendo das esquerdas
embora pouco se note.

Não me lembro das vezes
que bati no fundo
por causa do despenhadeiro
das boas intenções,

nem quero publicitar
os meus lances mais gloriosos:
virar-me para trás
deixa-me melancólico.

Dê-se só um conselho
aos mais paranóicos:
a amnésia, se oportuna,
afasta o mal da vista.

No que respeita à memória,
melhor pecar por sóbrio:
a minha infância são recordações
de algum jardim zoológico

e deslizes pueris
de vate vaidoso
e megalomania
de calça curta.

Receio hoje os truques
dos poetas moços
e ponho-me a distinguir
as vozes dos buços.

Amo o meu povo basco,
um povo nobre e tosco
metido num atolamento
que assinaria El Bosch(o).

Deixar-lhe-ei em herança
o meu pó e os meus ossos
e quatro ou cinco livros
de versos rancorosos.

E se a poesia
me deu quase tudo
(ou seja, o belo punhado
de amigos que guardo),

brigar e apaixonar-me
são artes que melhor
conheço que a poesia:
agora julgai vós.



(Versão minha; poema incluído em Hacia da democracia. La nueva poesía (1968-2000); organização de Araceli Iravedra, Visor, 2016, pp. 446-448).


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Manuel Vilas

Hölderlin



O grande poeta, linhagem das enfermidades mentais,
cuja palavra, segundo os doutos e cabais académicos,
falou da Grécia e da Alemanha, que propôs aos mortais
um reino superior, lá nas alturas onde os deuses vivem,
foi no tempo da sua vida um pobre tonto que esqueceu
até o seu próprio nome. Teve razão Goethe, que viu nele
o que era na realidade: primeiro, um jovem exaltado,
com pouca experiência do mundo e demasiada filosofia,
depois mais um louco entre os que adubam os campos da terra.



(Versão minha; poema incluído em Hacia la democracia. La nueva poesía (1968-2000); organização de Araceli Iravedra; Visor, 2016, p. 694).

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Barry Gifford

Final de setembro em Toronto e o tempo ainda está bom



Adoro estas
           miúdas
           orgulhosas
      dos
           seus seios
Quando passamos
                 na rua
             confessam
                       tudo
           sabendo como
                    é fácil
            para mim
                     perdoar-
                         -lhes



(Versão minha, a partir do original e da tradução de Blanca Tortajada, incluídos em Back in America, Renacimiento, Sevilha, edição bilingue,, 2011, p. 67.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Pedro Sevilla

Burros na Medina de Fez



Quando pensava que já não voltaria a ver-vos,
que seríeis somente uma paisagem remota da infância,
haveis regressado aos meus olhos, sensatos carregadores
dum mundo fabuloso que pensava extinto.
Burros meus, confrades, sábios de olhos escuros,
julgava-vos mortos e era eu que faltava,
eu que, nos braços do tempo, saí do eterno.

Na velha Medina de uma cidade de um dia
voltei a ser o menino solitário de então,
que vos olhava com lágrimas vendo os vossos joelhos
dobrarem-se sob o peso de duras cargas.

Brutos irmãos meus, inocentes burricos,
hoje vi de novo o almocreve ruço
com o seu pregão cansado de cal branca,
o padeiro alegre e a sua burrinha elegante,
a dos laçarotes vermelhos gingando à sua frente
enquanto deixava um rasto de cheiro a pão e a mãe.

Nem sequer senti medo quando vos vi
carregados de peles mortas para os curtidores,
porque já sei de um sítio onde posso esconder-me
e ser, como vós, inocente de novo.



(Versão minha; Para cuando volvamos (Poesía completa, 1992-2018); Renacimiento, Sevilla, 2018, p. 149).

domingo, 12 de abril de 2020

Pedro Sevilla

Para José Mateos



Uma imagem antiga, da minha infância,
acompanha-me sempre como um símbolo
da amizade: o meu avô, numa feira
de São Miguel, bêbedo e abraçado a outro velho,
chora feliz, ri-se e pede mais meia garrafa.
Com os abraços, com a bebedeira,
têm os fatos sujos e as boinas torcidas,
as botas enlameadas por causa
da primeira chuva de setembro.

Esta imagem, José, não é nada edificante,
no entanto sempre que penso
neste sentimento que nos une,
diferente das tristes
misérias do amor e das suas crueldades,
recrio na minha memória aqueles velhos
aturdidos de vinho e de alegria
- há charcos de água azul
no barro pisado pelos animais -:
a amizade é um par homens
que volta da feira, ou da vida
(que volta da feira que é a vida),
irmanados, rindo-se, chorando
com os braços ao ombro
e os fatos sujos.



(Versão minha; poema incluído em Para cuando volvamos (Poesía completa, 1992-2018), Renacimiento, Sevilha, 2018, p. 112).

sábado, 11 de abril de 2020

Pedro Sevilla

Propósito



Portar-me, perante a dor, como essa amendoeira
que, ferida pelo machado, sente cair os ramos,
aos quais não voltarão mais os gorjeios.

Ser, como ela, taça de luz,
espera fecunda,
paciência milenar
que sabe que o sol de março há-de regressar
e florir-lhe a alma,
e encher de perfume as suas feridas.



(Versão minha; poema incluído em Para cuando volvamos (Poesía completa, 1992-2018); Renacimiento, Sevilha, 2018, p. 156).

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Barry Gifford

O dia em que morreu Allen Ginsberg



Levantei-me cedo
olhei pela janela
as mercadorias que cruzavam
o Hudson
o sol a aparecer
recalcitrante, um dia mais frio
que o esperado
Na noite anterior ouvira dizer
que o Allen estava doente, moribundo
davam-lhe só uns
poucos meses de vida
Era estranho estar
em Nova Iorque, a sua cidade
no momento
da sua desaparição
O jornal dizia
que ele tinha terminado
recentemente
um livro novo chamado
Morte e fama
Esta tarde visitei
um dos meus melhores
e mais antigos amigos
que há poucos dias
me dissera que
não se esperava que o seu pai
vivesse mais do que
duas semanas
O pai do meu amigo era
um tipo duro
sempre gostei dele
um tipo da classe operária
de Chicago
onde ainda vivia
O filho telefonou-lhe
quando eu estava
com ele
e passou-me o telefone
O velho parecia
tão rijo como sempre
- era difícil acreditar
que ele partiria
em breve
Ao falar comigo
tratou-me por um nome
da minha infância
e de repente
fui-me abaixo
Não há maneira de impedir
isto,
pensei.
Agora Allen G. morreu
e foi saudar
o Jack e o Neal
quase trinta anos depois
Imagino o Jack
no céu budista
a dizer, Obrigado
por vires, Al
Esta manhã é o seu funeral
decidi não ir
imagino que haverá
uma multidão
e eu não gosto de funerais
de qualquer modo
qual é a ideia
Às nove da manhã
quando está agendado o início
da cerimónia budista
uma cerimónia de quatro horas
que culmina com a cremação
a campainha toca
Tenho uma visão de Allen
de pé à porta
a dizer, Eu não morri,
mas não quero perder
isto. Vem comigo!
Mas em vez dele
é o canalizador
Conheci o Allen
há trinta e um anos
em Londres
Tinha lá ido com o seu
pai Louis para fazer
um recital de poesia
Alguns anos depois
trabalhámos juntos
organizando um livro
de cartas suas e do Neal
Vi-o a última vez
faz agora dois anos
em Paris
Encontrámo-nos na
rua de Sèvres
mostrou-me uma medalha
que o ministro francês
da Cultura
lhe tinha concedido
Disse-me
que eu estava com muito bom ar
deu-me beijos húmidos
nas bochechas
Allen escreveu
Que a morte sustenha os seus fantasmas!
e ele chegou
aos setenta anos
Ele e Kerouac
foram duas
das minhas maiores inspirações
quando eu era puto
Deram-me a esperança
de que a beleza e o sentido
podiam ser encontrados
no meio do caos
Disse-lho uma vez
e o Allen respondeu
Mantém essa esperança!
Ao caminharmos juntos
num trilho do kitkidizze
do Gary Snyder em 1976
demos com
um monte de cinzas
e contornámo-lo com cuidado
As cinzas de Allen
serão enterradas
ao pé do túmulo de Louis
Na morte regressamos
ao pai
Adeus, Allen
agora estás
com os fantasmas.



(Versão minha a partir do original e da tradução espanhola de Blanca Tortajada reproduzidos em Back in America, Renacimiento, Sevilha, edição bilingue, 2011, p. 25-33).


quinta-feira, 9 de abril de 2020

Barry Gifford

Poema



Que o pensamento
      de ficar sem ti
           me passe pela cabeça
       deixa-me passado
Nunca me preocupei
           com ninguém
      assim até agora
              nunca pensei
      que poderia cometer
              tamanho erro
                apaixonar-me
       pela verdadeira rapariga
           dos meus sonhos
Agora é demasiado tarde
       o caçador foi apanhado
            na armadilha
       Dormes
            com a minha alma
                 na tua boca
       Quando nos beijamos
                  consigo sentir-lhe o sabor



(Versão minha a partir do original e da tradução espanhola de Blanca Tortajada reproduzidos em Back in America, Renacimiento, Sevilha, edição bilingue, 2011, p. 83).

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Barry Gifford

O meu último soneto



Não sei se te lembras de mim,
sou o rapaz com quem dançaste
naquele piquenique comunista em Albarese
Estávamos tão apaixonados que não nos importámos nada
com a música foleira, nem com o tempo ou a roupa colada
aos nossos corpos pelo suor enquanto girávamos
Os teus irmãos, as suas mulheres e filhos
pareciam extasiados connosco, com o modo como dançávamos,
como éramos felizes -
O que aconteceu, meu amor?
Como nos despenhámos?
Sinto-me como Ícaro, sem asas
afundando-se no mar debaixo do peso terrível
do coração do seu pai



(Versão minha a partir do original e da tradução de Blanca Tortajada reproduzidos em Back in America, Renacimiento, Sevilha, edição bilingue, 2011, p. 89).