domingo, 7 de junho de 2020

Jon Juaristi

Sinais de agradecimento

                                     A Luis García Montero



Não tenho carro
nem casa própria. Vivo só
e a minha conta corrente
está no vermelho.

Habito num frigorífico,
num frio promontório
varrido pelas turvas
ventanias do outono.

Passei a quarentena,
dobrei o meu Cabo Horn,
perdi todos os mastros
da alma nos escolhos.

Vivi em países
não especialmente exóticos,
mas do triste mundo
sei mais do que os geógrafos.

Nasci sob Saturno,
deus nocturno do chumbo.
Coube-me um tempo
inclinado para a tormenta.

A minha juventude entretém-se
com jogos perigosos.
Sigo sendo das esquerdas
embora pouco se note.

Não me lembro das vezes
que bati no fundo
por causa do despenhadeiro
das boas intenções,

nem quero publicitar
os meus lances mais gloriosos:
virar-me para trás
deixa-me melancólico.

Dê-se só um conselho
aos mais paranóicos:
a amnésia, se oportuna,
afasta o mal da vista.

No que respeita à memória,
melhor pecar por sóbrio:
a minha infância são recordações
de algum jardim zoológico

e deslizes pueris
de vate vaidoso
e megalomania
de calça curta.

Receio hoje os truques
dos poetas moços
e ponho-me a distinguir
as vozes dos buços.

Amo o meu povo basco,
um povo nobre e tosco
metido num atolamento
que assinaria El Bosch(o).

Deixar-lhe-ei em herança
o meu pó e os meus ossos
e quatro ou cinco livros
de versos rancorosos.

E se a poesia
me deu quase tudo
(ou seja, o belo punhado
de amigos que guardo),

brigar e apaixonar-me
são artes que melhor
conheço que a poesia:
agora julgai vós.



(Versão minha; poema incluído em Hacia da democracia. La nueva poesía (1968-2000); organização de Araceli Iravedra, Visor, 2016, pp. 446-448).


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