segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Nicolás Guillén

 Digo que não sou um homem puro



Não vou dizer-te que sou um homem puro.
Entre outras coisas
falta saber se o puro existe.
Ou se, digamos, é necessário.
Ou possível.
Ou se sabe bem.
Por acaso já provaste a água quimicamente pura,
a água do laboratório,
sem um grão de terra ou de esterco,
sem o pequeno excremento de um pássaro,
a água feita apenas de oxigénio e hidrogénio?
Bah! que nojo.

Não te digo pois que sou um homem puro,
não te digo isso, pelo contrário.
Amo (as mulheres, naturalmente,
pois o meu amor pode dizer o seu nome)
e gosto de comer carne de porco com migas,
e grão-de-bico e enchidos, e
ovos, frangos, carneiros, perus,
peixe e marisco,
e bebo rum e cerveja e aguardente e vinho,
e fornico (mesmo de estômago cheio).
Sou impuro, que queres tu que te diga?
Completamente impuro.
No entanto,
penso que há muitas coisas puras no mundo
que não são mais que pura merda.
Por exemplo, a pureza do nonagenário virgem.
A pureza dos noivos que se masturbam
em vez de se deitarem juntos numa pousada.
A pureza dos colégios internos onde
a fauna pederasta
abre as suas flores de sémen transitório.
A pureza dos clérigos.
A pureza dos académicos.
A pureza dos linguistas.
A pureza dos que asseguram
que temos de ser puros, puros, puros.
A pureza dos que nunca tiveram blenorragia.
A pureza da mulher que nunca lambeu uma glande.
A pureza daquele que nunca sugou um clítoris.
A pureza da que nunca pariu.
A pureza do que nunca procriou.
A pureza do que golpeia o peito, e
diz santo, santo, santo,
quando é um diabo, diabo, diabo.
Enfim, a pureza
de quem não chegou a ser suficientemente impuro
para saber o que é a pureza.

Ponto final, data e assinatura.
Assim o deixo escrito.



(Versão minha. Fonte: Poesía cubana del siglo XX; selecção e notas de Jesús J. Barquet e Norberto Codina; prólogo de Jesús J. Barquet; Fondo de Cultura Económica, San Lorenzo (México), 2002, pp. 130-131).

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