sábado, 7 de setembro de 2019

Francisco Díaz de Castro

Os cachimbos



Com o passar do tempo a experiência impõe
a crescente e estranha sensação
de que só existe aquilo que desejas.
Não alimentes ilusões, que assustam qualquer mudança
ou novidade que o futuro proponha.
Basta ter o controlo das situações.

Até deixas de ser coleccionador.
Para dar um exemplo convincente,
dás por terminada a colecção de cachimbos.
Todo aquele que fuma com cachimbo,
ainda que vá ampliando o repertório,
torna-se assíduo dos mais batidos.
Os cachimbos de verniz intacto
são sempre imprevisíveis
na hora de os atacar:
nem a dimensão, nem a forma, nem o desenho
permitem saber como vão reagir.
Por isso o costume recomenda,
para que não te amargue o seu sabor,
que não te esforces em demasia,
concentra-te nuns poucos que sejam suficientes,
prepara-os como deve ser, ajeita-os à tua boca.

Em silêncio fez-se um pacto com eles.
Deixam-te pensar enquanto vão consumindo
a mistura que se conjuga com cada um.
Sabes como respiram, conheces os seus caprichos
e o aroma que emanam enquanto os usas.
Para a intimidade prefiro os de urze:
os de espuma do mar deslumbram-nos
mas são mais frios e tendem a apagar-se.
Os cachimbos bem tratados permitem-te
uma promiscuidade que não os danifica
se souberes alterná-los na medida certa.
Acaricias tranquilo as suas curvas conhecidas,
respondem às tuas mãos com calor,
olham-te com os seus olhos
queimados pelo fogo que alimentas,
e entregam-te em cânticos as suas almas que crepitam.

Estão todos marcados pelos teus dentes.
Ao acendê-los cada um pede-te
a força de sucção de que necessita
para ser feliz. E quando morreres
ninguém te substitui:
os cachimbos dos mortos não se fumam.



(Versão minha, dedicada a Miguel Martins; poema incluído no volume antológico Centuria. Cien años de poesía en español; A.A.V.V., 3ª edição, Visor, Madrid, pp. 112-113).