quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Javier Salvago

Tesouro divino



A juventude passou.
Bem está o que acabou.
Não voltaria a ser jovem
nem que mo pagassem.

Pôr-me a andar de novo
pelo caminho trilhado
dos sonhos ilusórios
e das vagas verdades?

Começar outra vez
as velhas batalhas
e as suas velhas feridas?
Voltar às caminhadas

pela noite, pelo inferno,
ao gosto pela má
vida? Fazer de tudo,
que é comédia, um drama?

Voltar a alimentar-me
de mitos e falácias,
de modas e frenesim,
de palavras gastas?

Carregar aos ombros
a fastidiosa carga
de ser interessante,
original?... Que disparate!

Confiar, como ontem,
na vã esperança
de que tudo será
melhor amanhã?

Ter toda a vida
pela frente - tão longa -,
e o que já passou
não ser nem metade?

A juventude foi-se.
Fica bem o que acaba.
Não voltarei a ser jovem,
graças a Deus.



(Outubro, 1996)



(versão minha; poema do livro Variaciones y reincidencias, de 1997, que pode ser lido algures aqui).

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Ismail Kadare

Horários de comboios



Gosto da companhia desses horários dos comboios nas pequenas estações
Enquanto espero na plataforma húmida e contemplo a infinitude dos carris.
O uivo distante de uma locomotiva. O quê, o quê?
(Ninguém compreende a nebulosa linguagem das máquinas
a vapor)

Comboios de passageiros. Cisternas. Vagões cheios de minério
Passam sem cessar.
Assim passam os dias da tua vida pela estação do teu ser,
Cheios de vozes, ruídos, sinais
E do pesado minério da memória.




(versão minha a partir da tradução inglesa de Robert Elsie, reproduzida em An Elusive Eagle Soars - anthology of modern albanian poetry, organização, tradução e introdução de Robert Elsie, Forest Book/Unesco, Londres, p. 1993, p. 84).

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Fatos Arapi

A vida



A vida é uma estação de comboios feita de separações
e encontros.
Nós somos viajantes em constante movimento,
Transportando nas mãos a nossa inseparável bagagem,
Uma pequena mala
Cheia de contendas, fúrias e memórias.




(versão minha a partir da tradução de Robert Elsie, reproduzida em An Elusive Eagle Soars - anthology of modern albanian poetry, organização, introdução e tradução de Robert Elsie, Forest Book/Unesco, Londres, 1993, p. 40).

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Mark Strand

Manter as coisas intactas



Num campo
eu sou a ausência
de campo.
Este é
sempre o caso.
Onde quer que esteja
sou aquilo que falta.

Quando caminho
separo o ar
e o ar move-se
para ocupar os espaços
onde o meu corpo esteve.

Todos temos razões
para nos movermos.
Eu movo-me
para manter as coisas intactas.



(versão minha; o original pode ser lido aqui).

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Dritëro Agolli

Trabalho



Debaixo das suas unhas a sujidade era azul escura,
Sujidade vinda dos campos e dos prados,
Azul como as linhas no globo,
Como as cordas de um violino.
No banho não se pôde lavar
Com água e sabão.
Sujidade que penetrou nos sulcos dessas mãos silenciosamente
Como um arado rasgando a terra.
Eu conheço estes dedos tépidos,
Estes dedos bons.
As unhas do meu pai estavam azuis desta sujidade
Mesmo quando ele repousava no seu caixão.
Parecia não estar verdadeiramente morto,
Mas simplesmente a dormitar antes de ir para os campos
Por onde andaria até amanhecer,
Deitando-se de costas com a cabeça entre as palmas das suas mãos.




(versão minha, a partir da tradução inglesa de Robert Elsie, reproduzida em An Elusive Eagle Soars - anthology of modern albanian poetry, organização, tradução e introdução de Robert Elsie, Forest Book/Unesco, Londres, 1993, p. 56).

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Dritëro Agolli

A pequena burguesia



Para quê tanta gritaria?
podemos sentar-nos na cozinha;
A comida cheira bem, não teremos fome;
Se tivermos sede,
podemos beber;
Se as nossas unhas crescerem demasiado,
podemos cortá-las!




(versão minha, a partir da tradução inglesa de Robert Elsie, reproduzida em An Elusive Eagle Soars - anthology of modern albanian poetry, organização, tradução e introdução de Robert Elsie, Forest Book/Unesco, Londres, 1993, p. 47).

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Martin Camaj

A minha terra



Quando morrer possa eu tornar-me erva
Da primavera nas minhas montanhas,
No outono serei semente.

Quando morrer possa eu tornar-me água,
A minha nebulosa respiração
Cairá sobre os prados como chuva.

Quando morrer possa eu tornar-me pedra,
Nos limites da minha terra
Possa ser eu um ponto de referência.



(versão minha, a partir da tradução inglesa de Robert Elsie, reproduzida em An Elusive Eagle Soars - anthology of modern albanian poetry, organização, tradução e introdução de Robert Elsie, Forest Book/Unesco, Londres, 1993, p. 32).