sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Harold Pinter

Células cancerígenas


"Células cancerígenas são aquelas que se esqueceram de como morrer", enfermeira do Hospital Royal Marsden



Esqueceram-se de como morrer
E assim alastram sua vida assassina.

Eu e o meu tumor amavelmente lutamos.
Esperemos evitar uma morte dupla.

Preciso de ver morto o meu tumor
Um tumor que se esquece de morrer
Planeando ao invés o meu estertor.

Mas eu lembro-me de como morrer
Apesar de mortas minhas testemunhas.
Mas eu lembro-me do que disseram
De tumores capazes de as tornar
Tão cegas e tontas quanto tinham sido
Antes do nascer dessa doença
Que trouxe o tumor até à cena.

As negras células hão-de secar e morrer
Ou cantar alegremente e seguir o seu mister.
Noite e dia tão suave é o seu crescer,
Nunca se sabe, não o vão elas dizer.



(tradução inédita, datada de 8 de Maio de 2002, de Ricardo Castro Ferreira e Gil Santos Júnior, que assim colaboram com este blogue de poesia passada para português).

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Günter Eich

Inventário



Isto é o meu gorro,
isto é o meu casaco,
eis o meu estojo de barbear
numa bolsa de linho.

Uma caneca de estanho:
o meu prato, o meu copo,
no metal
tracei o meu nome.

Tracei-o com este
precioso prego
que escondo
dos olhos gananciosos.

Na minha mochila há
um par de meias de lã
e outras coisas que
não revelo a ninguém,

isto serve-me de almofada
à noite sob a cabeça.
O cartão aqui está
entre mim e a terra.

O lápis de carvão é
o que mais amo:
de dia escreve por mim os versos
que pensei durante a noite.

Isto é o meu bloco de notas,
isto é a minha tela,
isto é a minha toalha,
isto é o meu fio.



(versão minha a partir da tradução inglesa de Charlotte Melin, reproduzida em The Faber Book of 20th-Century German Poems, organização e introdução de Michael Hofmann, Faber and Faber, London, 2005, p. 88).

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Sapardi Djoko Damonno

Quem és tu



Eu sou Adão
o que comeu a maçã;
Adão subitamente consciente de si mesmo,
assustado e envergonhado,
eu sou Adão, o que descobre
o bem e o mal, passando
de um pecado a outro;
Adão ininterruptamente desconfiado
de si mesmo,
escondendo o rosto.
Eu sou Adão espojando-me
na armadilha do espaço e do tempo
sem qualquer ajuda da realidade:
o paraíso perdido
por causa da minha suspeição
em relação à Presença.
Eu sou Adão
o que ouviu Deus dizer
adeus, Adão.



(versão minha a partir da tradução do indonésio para o inglês reproduzida em The poetry of our world, organização de Jeffery Payne, Perennial, New York, 2001, pp. 422-423).

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Chairil Anwar

Por mim



Quando a minha hora chegar
Ninguém vai chorar por mim,
E tu também não

Malditas sejam todas essas lágrimas!

Eu sou uma fera furiosa
Expulsa do rebanho

As balas podem furar-me a pele
Mas eu continuarei sem parar,

Arrastando para a frente as minhas chagas e a minha dor,
Atacando
Atacando
Até o sofrimento desaparecer

E não me vai custar nada

Eu quero viver mais mil anos



(versão minha, a partir da tradução do indonésio para o inglês de Burton Raffel reproduzida em The poetry of our world, organização de Jeffery Payne, Perennial, New York, 2001, p. 427).

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Eavan Boland

Neste momento



Um lugar algures.
Ao anoitecer.

Coisas estão à beira
de acontecer
longe dos olhares.

Estrelas e borboletas nocturnas.
E cascas enrolando-se em volta dos frutos.

Mas não ainda.

Uma árvore é negra.
Uma janela é amarela como manteiga.

Uma mulher baixa-se para receber uma criança
que correu para os seus braços
neste momento.

As estrelas irrompem.
As borboletas volteiam.
As maçãs amadurecem no escuro.



(versão minha; original reproduzido aqui).

sábado, 18 de outubro de 2008

Reiner Kunze

Com o som em baixo



Então vieram
doze anos
em que não estive autorizado a publicar
diz o homem na rádio

Eu penso em X
e começo a contar



(versão minha, a partir da tradução inglesa de Ewald Osers reproduzida em The Faber Book of 20th-Century German Poems, selecção e introdução de Michael Hofmann, Faber and Faber, London, 2005, p. 162).

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Volker Sielaff

Sem sono



A barulheira dos pássaros
nas árvores às três
e um quarto.

Cioran
queixou-se de insónias
a vida toda.

Atiro-me
às cegas
para os braços da manhã.

Nenhuma experiência
é comunicável.



(versão minha, a partir da tradução inglesa de Michael Hofmann reproduzida em The Faber Book of 20 th-Century German Poems, selecção e introdução de Michael Hofmann, London, 2005, p. 203).

sábado, 11 de outubro de 2008

Inge Müller

Debaixo do entulho III



Quando fui buscar água
A casa desmoronou-se sobre mim
Nós amparámos a casa
Eu e o cão abandonado.
Não me perguntem como o conseguimos
Não me lembro.
Perguntem ao cão.



(versão minha a partir da tradução inglesa de Michael Hofmann, reproduzida em The Faber Book of 20th-Century German Poems, selecção e introdução de Michael Hofmann, Faber and Faber, London, 2005, p. 203).

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Adonis

O deserto
(O Diário do Cerco de Beirute, 1982)

(...)


9
Ele fecha a porta
Não para aprisionar a sua alegria
... Mas para libertar o seu desgosto.



10
Um noticiário
Sobre uma mulher apaixonada
A ser morta,
Sobre um rapaz a ser raptado
E um polícia a crescer para dentro de um muro.



11
Venha o que vier acabará por envelhecer
Por isso leva tudo contigo menos esta loucura - prepara-te
Para continuares a ser um estranho...



12
Encontraram pessoas em sacas:
Uma sem a cabeça
Outra sem a língua ou as mãos
Outra esmagada
As restantes sem nomes.
Enlouqueceste? Por favor,
Não escrevas sobre estas coisas.


(...)


(mais quatro partes de um poema com trinta e cinco; versões minhas a partir da tradução para inglês de Abdullah al-Udhari, reproduzida em Victims of a Map: a bilingual anthology of arabic poetry, SAQI, London, 2ª edição, 2005, pp. 141-143).

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Adonis

O deserto
(O Diário do Cerco de Beirute, 1982)



1
O meu tempo diz-me grosseiramente:
Tu não fazes parte.
Respondo grosseiramente:
Não faço parte,
Procuro compreender-te.
Agora sou uma sombra
Perdida na floresta
De um crânio.



2
Estou de pé, o muro é uma barreira -
A distância encurta-se, uma janela recua.
A luz do dia é fio
Cortado pelos meus pulmões para coser a noite.



3
Tudo o que eu disse sobre a minha vida e a minha morte
Retorna no silêncio
Da pedra debaixo da minha cabeça...



4
Estou cheio de contradições? É verdade.
Agora sou uma planta. Ontem, quando estava entre fogo e água
Era uma colheita.
Agora sou uma rosa e carvão vivo,
Agora sou o sol e a sombra
Não sou um deus.
Estou cheio de contradições? É verdade...



5
A lua usa sempre
Um elmo de pedra
Para combater as suas próprias sombras.



6
A porta da minha casa está fechada.
A escuridão é um cobertor:
Uma lua pálida chega com
Uma mão cheia de luz
As minhas palavras falham
Não traduzem a minha gratidão.



7
A matança mudou a forma da cidade - Esta pedra
É osso
Este fumo respiração de pessoas.



8
Nunca nos encontrámos,
Rejeição e exílio mantêm-nos separados.
As promessas morreram, o espaço morreu,
Morrermos sós tornou-se o nosso ponto de encontro.



(...)


(primeiras oito partes de um poema com trinta e cinco; versão minha, a partir da tradução inglesa de Abdullah al-Udhari, reproduzida em Victims of a Map: a bilingual anthology of arabic poetry, SAQI, London, 2ª edição, 2005, pp. 135-139).

sábado, 4 de outubro de 2008

Thomas Lux

Um pequeno dente



À tua menina nasce um dente, depois o segundo,
e o quarto, e o quinto, depois ela quer carne
directamente do osso. Acaba

tudo: vai aprender certas palavras, apaixonar-se
por cretinos, imbecis, um qualquer falinhas
mansas a caminho da prisão. E tu,

a tua mulher, envelhecem, estão gastos,
e não se lastimam. Já viveste, amaste, os teus pés
doem. Anoitece. A tua filha está enorme.



(versão minha; original reproduzido aqui).