sábado, 27 de março de 2021

Hanadi Zarka

 Não há sítios maus para se dar um beijo



Ele disse-lhe que a rua
não era o seu lugar preferido para trocar beijos
mas ela insistiu

Não há sítios maus para nos beijarmos.



(Versão minha a partir da tradução francesa de Maram al-Masri incluída na Anthologie des femmes poètes du monde arabe; selecção de Maram al-Masri; Le Temps des Cerises, Montreuil, 2019, p. 30).

terça-feira, 23 de março de 2021

Dorianne Laux

 Em defesa dos estranhos



Seja qual for o peso, o desgosto,
o nosso dever é carregá-lo.
Erguemo-nos e seguimos em frente, força obtusa
que nos empurra através das multidões.
Eis o jovem que me indica a direção
tão avidamente. A mulher que segura a porta de vidro aberta
e aguarda com paciência que o meu corpo vazio passe.
E isto o tempo todo, cada gesto de bondade
desencadeando outro - um estranho
que canta para ninguém enquanto avanço, as árvores
que oferecem a sua floração, a criança
que levanta os olhos amendoados e sorri.
De algum modo vêm sempre ter comigo, parece
que estão apenas à espera, protegendo-me
de mim própria, daquilo que me impulsiona
tal como os deve ter impulsionado em algum momento -
esta tentação de darmos um passo atrás frente ao abismo
e cairmos sem peso, para longe do mundo.



(Versão minha; original aqui).

segunda-feira, 15 de março de 2021

Vojislav Karanovic

 O primeiro poema



"Toda a gente tem de ser alguma coisa" -
era o título do meu primeiro poema,
escrito aos sete anos.

O primeiro verso coincidia com esse título,
seguiam-se mais versos empolgados
sobre como toda a gente tem de ser alguma coisa:

"alguém tem de ser médico,
alguém tem de cortar a relva,
alguém tem de escrever poemas"

e outros do mesmo género
dos quais agora já não
me lembro.

O poema acabava com um verso
idêntico ao primeiro:
"Toda a gente tem de fazer alguma coisa".

Enquanto fazia as limpezas, o meu pai
atirou o poema fora, como um bocado de papel
que acumula pó.

Pensei nisto muitas vezes,
por vezes sentindo pena,
até que percebi:

o papel com as palavras do poema
pode ser rasgado, desprezado,
ou atirado ao fogo

que isso não afecta o poema. Ele é
como um ser humano: pode estar perdido,
vaguear por aí, morrer, mas não desaparecerá.



(Versão minha, a partir da tradução inglesa de Biljana D. Obradovic, incluída em Cat painters - An anthology of contemporary serbian poetry; organização de Biljana D. Obradovic e Dubravka Djuric, Diálogos Books, 2016, pp. 233-234).

domingo, 7 de março de 2021

Yassin Adnane

 Os poetas



São assim os poetas!
As mulheres que os desejam
são menos belas
que as amantes dos cantores
e das estrelas de futebol
As secretárias das administrações
não têm por eles qualquer consideração
e as locutoras do primeiro canal
mal os suportam
Até os empregados de mesa
das tabernas infames
servem-nos quase sempre de má vontade

Só os chicotes dos verdugos
os reconhecem
Só as balas dos cobardes



(Versão minha a partir da tradução espanhola de Antonio Álvarez de la Rosa incluída em La poesía marroquí - De la independencia a nuestros días (Antología); selecção de Abdellatif Laâbi, Idea, Tenerife, 2006, p. 62).