quinta-feira, 30 de junho de 2022

Justyna Bargielska

Tradução



Da rua, através da janela, vejo a minha mãe de pé junto ao lava-loiças da cozinha
da casa em chamas, ela mesma em chamas desde há um bom bocado,
não resta muito dela, na verdade só o seu perfil. Passarão trinta anos
e a minha filha verá pela janela
da rua como ardo na casa em chamas. Nem sequer sei
se já saberá então o que está a ver.

Arranjei espaço para a morte na minha vida,
pus de lado o cobertor, a camisa de dormir, a caixa das costelas.
Não teria espaço para nenhum de vós se não tivesse arranjado
espaço para a morte. Enquanto não arranjei espaço para a morte,
para nenhum de vós tinha espaço, não tenham ilusões.
Abro uma noz e encontro as cinzas de um rato,
do meu marido e dos meus filhos, o meu prémio, a minha confirmação.



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, madrid, 2021, p. 139).

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Izet Sarajlic

 Comer uvas no autocarro para Skojé com a poetisa espanhola Clara Janés



Comer uvas no autocarro para Skojé com a poetisa espanhola Clara Janés,
passear à meia-noite pela rua Knez Mihailova com Stevan Raicovic,
tomar o primeiro café da manhã em Novi Sad com Mladen Leskovac,
abrir a caixa do correio e encontrar uma carta de Bulat Okudzhava,
cantar depois de uma leitura de poesia em Trebinje com Manolis Anagnostakis,
todas estas e mais mil coisas
só podem ser disfrutadas nesta vida.
Aqueles que afirmam que a vida é o pior que nos podia acontecer
não entenderão nunca a alegria que lateja neste poema.
Não escrevo para eles.



(Versão minha. Fonte: Una calle para mi nombre; selecção e prólogo de Juan Vicente Piqueras, Ayuntamiento de Lucerna, 2ª edição, 2003, p. 53).

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Blanca Sarasua

Envia-me uma carta



Envia-me uma carta, ainda que se perca.
Envia-me velas acesas, não sei,
um monte, por exemplo, que me olhe de cima.
Envia-me sonetos, pergaminhos,
capitéis coríntios que reforcem
esta luz da tarde que resvala.
Alguma coisa de Brahms, o mar e o seu epicentro.
Bandeiras sem manchas de cores,
que se possam pintar como se quiser.
E sobretudo ar, sem condutas, ar livre.
Por agora, a carta, ainda que se perca.



(Versão minha. Fonte: La casa del presente - 14 poetas vascos; selecção de Iñigo Linaje e Ángel Guinda, Olifante, 2021, p. 43).

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Wioletta Grzegorzewska

As línguas das partículas



O professor de química, bom conhecedor de todas as bases
e todos os ácidos, de pé frente à tabela periódica,
passava horas a meter-nos na cabeça os símbolos dos elementos.
No laboratório dava-nos lições com a linguagem das partículas,
brincava à apanhada com os átomos usando o oscilador,
com as provetas, como um alquimista, torturava o mercúrio,
calculava a chuva em número de gotas.
No seu mundo as árvores tinham anéis regulares,
e a vida era directamente proporcional à morte.



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, Madrid, 2021, p. 117).

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Marzanna Bogumila Kielar

[Luminosos amanheceres da morte,]



Luminosos amanheceres da morte,
houve uma época em que se morria em casa.
Havia tempo para nos familiarizarmos com a morte,
para praticarmos um pouco com ela, começava-se cedo
com alguma coisa de pouca amplitude, uma dor nas costas
ou a rotura de um tendão.
O corpo vai-se desatando da vida.
Lança um olhar, como se se detivesse na fronteira entre dois Estados
e perguntasse: "A qual deles pertence esta terra?"
Ainda tem algum tempo antes de uma onda poderosa e morta 
se acumular às claras sobre os ombros.
Antes que cheguem os amanheceres sem brilho
no silêncio de um mundo vazio no qual não há ilhas
nem bonecos de areia e a solidão
é já absoluta



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, Madrid, 2021, p.39).

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Igor Zidic

 Poesia



Mesmo sem pássaros
o ar haveria
de cantar



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p.299).