quarta-feira, 30 de setembro de 2020

F. Scott Fitzgerald

 Princeton, o último dia



A luz derradeira flutua e declina sobre a terra,
A terra ampla e rasa, a terra radiante dos pináculos.
Os fantasmas da noite afinam de novo as liras
E erram, cantando, numa melancólica banda
Ao longo dos extensos corredores de árvores. Fogos pálidos
Ecoam pela noite de torre em torre.
Oh sono que sonha e sonho que nunca se cansa,
Retirai das pétalas da flor de lótus
Alguma coisa de tudo isto, a essência de uma hora!

Já nada se pode esperar da luz crepuscular da lua
Neste vale sequestrado por estrelas e pináculos;
Para nós, a eterna manhã do desejo
Perde-se no tempo e na tarde terrena.
Aqui, Heráclito, construíste com fogo
E coisas mutáveis a tua profecia atirada para longe,
Para os anos desaparecidos; nesta meia-noite desejo
Ver, reflectidos nas brasas, enredados
Nas chamas, o esplendor e a tristeza do mundo.



(Versão minha a partir do original e da tradução castelhana de Jesús Isaías Gómez López incluídos em Sueños de Lirios - Antología de poetas locos; selecção de Oscar Ayala; introdução de María Castrejón; Huerga & Fierro, Madrid, 2018).


sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Kadyr Myrzá Alí

Os nossos ancestrais



Dizem: os nossos antepassados, que viviam a vida
Como se caminhassem sobre as chamas,
Tinham coisas boas e más:
O que era mau, andavam sem cessar em transumância,
O que era bom, as estepes livres maravilhavam-nos.
O que era mau, deixavam-se levar pela má-língua,
O que era bom, a sua linguagem era rica e cheia de matizes.
O que era mau, não sabiam usar a enxada,
O que era bom, sendo bons atiradores,
Manejavam com perfeição as suas lanças.
O que era mau, aprenderam tarde a ler e a escrever,
O que era bom, criaram belas kuis*.
O que era mau, vendiam as filhas em troca de gado,
O que era bom, roubavam as suas amadas.
O que era mau, não eram bons comerciantes,
O que era bom, não enganavam ninguém.
O que era mau, casavam com as noras,
O que era bom, não abandonavam as viúvas.
Com os vizinhos conviviam em harmonia.
Juntos sobreviviam ao frio, suportavam penúrias.
O mau é que não construíam casas.
O bom é que não erigiam prisões!



(*Kuis: género musical tradicional casaque estreitamente vinculado às crenças e rituais religiosos).

(Versão minha a partir da tradução castelhana de Alexandra Dergacheva e Iván Martín Cerezo incluída na Antología de la poesía moderna en Kazajstán; Visor, Madrid, 2020, p.14).

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Philip K. Dick

 Uma serpente antiga



A filosofia é uma velha teia
Abandonada há muito; Os sonhos
Que a aranha teceu no seu interior
Brilham debilmente durante a noite
E sob o sol são só isto:
Fragmentos de folhas de pavor.



(Versão minha a partir do original da tradução castelhana não assinada incluída em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Oscar Ayala, introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, p. 151)


terça-feira, 8 de setembro de 2020

Charles Dickens

 Canção das larvas de Gabriel



Maravilhosos aposentos, maravilhosos aposentos,
Uns palmos de terra fria quando a vida acabou;
Uma pedra à cabeça, outra pedra aos pés,
Um rico e suculento banquete para os vermes digerirem;
Dispõe erva por cima e argila húmida em volta,
Maravilhosos aposentos, estes, em terra santa!



(Versão minha a partir do original e da tradução castelhana reproduzida em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Oscar Ayala, introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, p. 155)

sábado, 5 de setembro de 2020

Tumanbay Moldagalíev

 O cordeiro órfão


Levo os cordeiros todos juntos num punhado
E canto uma cantilena do avô pastor.
Parece que todo o pasto segue a melodia,
Oh, cânticos, cânticos, quantos havia.
Mas um cordeiro órfão mostra-se mais assustadiço que os restantes,
Colares de lágrimas congelaram-se-lhe nos olhos.
Também ele segue para a aldeia
Em correria com os outros.
Não o perdia de vista, dava-me pena.
Era espevitado, destro, rápido como todos.
Balem as ovelhas e os cordeiros ao encontrarem-se,
Como se não se vissem há um ano, não há um dia.
Ali mesmo vai o meu órfão infeliz,
Dá um gemido e com o focinho golpeia os úberes das ovelhas,
Corre para diante o pobre, bale timidamente,
Olha-me e continua a corrida.
O pobre orfãozinho corre e bale:
Será que nenhuma mãe alguma vez o mimou?
E neste mesmo instante eu gostaria de converter-me na sua mãe,
Alegrá-lo, abrir-lhe os braços.
O dia chegou ao fim e todos os cães pastores dormem,
As estrelas do céu iluminam tudo.
E só o balido de um órfão
Se ouve uma e outra vez sob a lua.
Eu não posso bater as asas livremente,
Pesados pensamentos rasgam-me ao longo da noite.
E como um cordeirinho branco dispus-me a procurar uma mãe,
Se for preciso corro o mundo inteiro.


(Versão minha a partir da tradução castelhana de Guillermo de la Puerta, incluída na Antología de la Poesía Moderna en Kazajstán; Visor, Madrid, 2020, p. 45).