domingo, 19 de maio de 2013

Vicent Andrès Estellès

Crónica especial



A morte de Manolete (1) nas folhas de um diário,
enquanto eu te esperava em Benimaclet.
Ou as execuções num pátio de Nuremberga
enquanto te via passar pela Rua das Barcas.
Um amor num tempo, que tempo!, oh que amor!
Um amor inscrito para sempre na história.
O "Mosteiro de Santa Clara" levantava-se no ar.
O Tyris (2) cheio de gente, o cheiro das gentes.
Os casais saíam, traziam as faces vermelhas.
As mães não sabiam o que fazer para o jantar.
Os pais ouviam rádios estrangeiras.
E todos pensavam que era coisa de quatro dias.
Ou, o mais tardar, de quatro semanas, quem sabe.
Os filhos faziam amor no vão das escadas.
O pai conversava com a mãe na cozinha.
A mãe envelhecia sobre grandes panelas absurdas,
branqueavam os cabelos sobre o osso da fronte.
Coisa de quatro dias ou de quatro semanas.
E passavam os dias, as semanas, os anos.
E a marcha de Mao pelo continente chinês.
Depois veio a Coreia. Depois veio o Vietname.
O pai morreu, morreu a mãe.
A filha casou-se com outro, anos depois.
Por vezes encontra-se com aquele primeiro amor.
Coisa de quatro dias ou de quatro semanas.
Como se entre eles não tivesse havido intimidade
no vão das escadas, falam dos filhos.
"O meu vai para o Liceu", "A minha tem sarampo".
Ganharam uma suja e triste civilidade.
De pé na rua, falam quando se encontram.
E cada um segue depois o seu caminho.
Oh o amor inscrito, que coisa, na história!



(Notas - (1) Toureiro espanhol, considerado por muitos como o maior de todos os tempos, morreu devido a uma cornada na coxa direita, a 29 de agosto de 1947. Franco ordenou três dias de luto nacional em Espanha. (2) Rio Túria (Valência).
 
 
(Versão minha a partir da tradução castelhana do autor, reproduzida em Antología; selecção de Jaume Perez Montaner e Vicent Salvador, Madrid, 2ª edição, 2003, pp. 58-59).

terça-feira, 14 de maio de 2013

Vicent Andrès Estellès

Os amantes

                                                                            "A carne quer carne"
                                                                                         Ausías Marc



"Em Valência não havia dois amantes como nós".
Amávamo-nos ferozmente de manhã à noite.
Recordo tudo enquanto vais estendendo a roupa.
Passaram anos, muitos anos; aconteceram muitas coisas.
De súbito ainda me colhe aquele vento ou o amor
e rodamos sobre a terra entre abraços e beijos.
Não concebemos o amor como um costume pacífico,
um costume amigável de troca de cumprimentos e galanteios
(e que nos perdoe o casto senhor López Picó).
Como um velho furação, ele acorda repentinamente
e atira-nos aos dois ao chão, junta-nos, empurra-nos.
Eu desejava, às vezes, um amor educado,
com música de fundo, beijando-te negligentemente
agora um ombro, depois a ponta de uma orelha.
O nosso amor é um amor brusco e selvagem
e nós temos a nostalgia amarga da terra
e de ir aos trambolhões entre beijos e arranhões.
Que querem que faça? É assim, já o sei.
Ignoramos Petrarca e muitas outras coisas.
As Estâncias de Riba e as Rimas de Bécquer.
Depois, tombados na terra, de qualquer maneira,
compreendemos que somos bárbaros, e que isso não pode ser,
que já não temos idade, e tudo isto e aquilo.

Que já não temos idade, e tudo isto e aquilo.
Não havia em Valência dois amantes como nós,
porque amantes como nós são paridos muito poucos.



(Versão minha a partir da tradução castelhana do autor reproduzida em Antología; selecção de Jaume Perez Montaner e Vicent Salvador; Visor, Madrid, 2ª edição, 2003, p. 57).

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Vicent Andrès Estellès

Gozo da rua

                                                                            Para Isabel



A pura alegria da rua
encheu-nos as mãos de ternos punhados de água,
e ríamo-nos, ríamo-nos como tolos,
e em todos os nossos músculos estava a água viva do gozo
vinda por entre as ervas e as lebres.
Íamos sem motivo,
desejando boa noite ao velho matrimónio
e oprimindo silenciosamente os nossos corpos ao vermos
aquela jovem mãe
dando mama ao filho...
Viver era para nós uma oferenda,
um pintassilgo de barro com duas penas pintadas de cores vivas,
um cavalgar em corcéis de cartão, verdes e amarelos,
como um carrossel,
acenando uns aos outros, dizendo: "Adeus, adeus, amor! Nunca te esquecerei!"
A vida era para nós uma surpresa,
uma rã viva no bolso,
uma enorme cúpula de cristal,
um silêncio, um desejo súbito, um estupor,
um relógio parado que Alguém nos tinha
dado para que no fim o pudéssemos abrir
como desde pequenos queríamos
e afinal nada havia de interessante lá dentro.
E voltámos a rir!
O tempo estava no ar. E estendemos as mãos
à procura de punhados de tempo. Mas o tempo também não estava ali!
Nada mais era a alegria da rua.
E os gritos
                 - "Golo!" -
dos miúdos que jogavam
futebol assim que saíam da escola...



(Versão minha a partir da tradução castelhana do autor reproduzida em Antología; selecção de Jaume Perez Montaner e Vincent Salvador; Visor, 2ª edição, Madrid, 2003, pp. 35-36):