quinta-feira, 29 de abril de 2021

Benjamín Prado

 Escrito em Lisboa



Dizia que se escreve porque existir não chega
e que passou incógnito pela sua vida;
que ser poeta era a sua forma de estar sozinho
e que se sentia sempre
"vencido como alguém que sabe a verdade".

Ao lado da sua estátua
contei a Maria que Pessoa sonhava
estar longe, apartado de quem era;
que construía ruínas
                                e que alguns o designavam
como o arquitecto do inacabado.

Acreditava que esconder-se significava ser livre
e que fechar os olhos o separava do medo:
"- Troca por vinho o doce amor que não terás."

Ontem vim a Lisboa
porque era a cidade desse homem triste
que só lutava para fugir ao combate;
que pensou que quem cala é dono do silêncio;
que não precisava de mais do que seis palavras
para contar a sua história:
"invejo todos porque não são eu";
e hoje parto seguro de que não trocaria
os seus versos negros pela marca branca
do teu anel na minha pele.

Prefiro estar contigo e que me esqueçam
a escrever uma obra prima na qual conte
que ainda não te encontrei
ou que já te perdi.



(Versão minha; Acuerdo verbal - Poesía completa (1986-2014); Visor, 2ª edição, 2018, pp.427-428).

sábado, 24 de abril de 2021

Blanca Varela

[Poemas. Objectos da morte. Eterna...]



Poemas. Objectos da morte. Eterna imortalidade
da morte. Algo como um gotejar febril e
nocturno. Poesia. Urina. Sangue.

Morte fluente e perfumada. Grande ouvido de
deus. Poesia. Silenciosa algaraviada do coração.



(Versão minha; original incluído em Antología La poesía del siglo XX en Perú; selecção de José Miguel Oviedo; Visor, Madrid, 2008, p. 420).

terça-feira, 20 de abril de 2021

Pranabendu Dasgupta

 Despida



Da palavra retiro a pulseira do tornozelo,
soará por si mesma.

A memória das pessoas está no interior da casa -
o que há lá fora? Os animais, mais gente, o jogo infinito.

A palavra acolhe tudo?

Se o interior é assim tão forte
para que será necessária
a música elaborada?

A língua bengali evolui a cada momento;
há que retirar-lhe então a pulseira acessória 
que lhe tilinta no pé,

deixar que soe o jogo do pé descalço.



(Versão minha a partir da tradução castelhana incluída em La pared de agua - Antología de poesía bengali contemporánea; organização e tradução de Subhro Bandopadhyay, adaptação de Violeta Medina; Olifante, Saragoça, 2011, p. 95).

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Rómulo Bustos Aguirre

 Nevermore



- Toc,toc, toc...
- Quem é?
- Orfeu
- O que desejas?
- Que me devolvam Eurídice
- O que ofereces em troca?
- Cantarei de modo que as pedras me sigam e as gazelas suspendidas detenham o seu voo
- Esse é um truque gasto, Orfeu. Já não satisfaz os Senhores da Morte.

Orfeu, penando em redor das portas do Hades, esgota todos os oferecimentos. Finalmente os deuses, num gesto entediado, transformam-no num corvo. 
É esse corvo que adeja incessante no poema de Poe.



(Versão minha; poema integrado no livro Casa en el aire; Pre-Textos, Valência, 2017, p. 59).

terça-feira, 6 de abril de 2021

Roma Não Perdoa a Traidores


(Mais informações aqui)

 



segunda-feira, 5 de abril de 2021

Hama Tuma

 Perseverança



Vivi acima das minhas possibilidades,
rasgando os limites da vida,
recusando-me a "pôr-me no meu lugar"
- ou a aceitar o meu destino.

A lua é andrajosa,
o meu firmamento está todo esburacado,
tenho fome e sede, e estou farto
de enterrar corpos debaixo do céu.

Mas pelo menos vivi
acima das minhas possibilidades,
recusando-me a pôr-me no meu lugar
- ou a dobrar-me diante do meu destino.




(Versão minha a partir da tradução inglesa incluída em Songs we learn from trees - An anthology of ethiopian amharic poetry; selecção/organização de Chris Beckett e Alemu Tebeje; Carcanet, Manchester, 2020, p. 247).


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Marvin Bell

Estar apaixonado



por alguém que não está apaixonado
por nós, estás a ver a minha situação.
Estar apaixonado por ti, que não estás
apaixonada por mim, percebes o meu dilema.
Estar apaixonado pela ideia de estares apaixonada
por mim, o que não acontece, compreendes

o problema. Estar apaixonado pelo teu 
modo de estar, podes imaginar como é duro.
Estar apaixonado pelo teu modo de seres tu,
mesmo que o teu modo de seres tu não seja o de estares
apaixonada por mim, podes julgar como é e compadeceres-te
por eu estar apaixonado por ti. Estar apaixonado

por alguém que não está apaixonado é ficar a saber
tudo sobre estar apaixonado quando estar apaixonado
é estar apaixonado por alguém que não está
apaixonado por ti, que é o que significa
estar apaixonado, o que tu sabes muito bem,
Minha Paixão, que é estar apaixonado pelo estar apaixonado.



(Versão minha; original incluído em The invisible ladder; organização de Liz Rosenberg; Henry Holt and Company, Nova Iorque, 1996, p. 8).