domingo, 15 de outubro de 2023

Museu da Angústia Natural


Mais informações aqui.

 

domingo, 23 de julho de 2023

Enterrados no Jardim (episódio 17)

Uma conversa com Joana Emídio Marques e Diogo Vaz Pinto:

domingo, 7 de maio de 2023

Cristina Peri Rossi

Oito poemas



Tenho uma dor aqui,
                                 do lado da pátria.


***


A poesia verdadeira exclui a sinceridade
no sentido banal
mas jamais admite a hipocrisia.


***


Futuro


Gostaria muito
de viver no próximo século
quando a felicidade
for uma pequena pílula
a ingerir
antes das refeições.


***


Monólogo


A vida não tem sentido. Para quê procurá-lo?
Se a vida não tem sentido
muito menos o terão o êxito ou o fracasso
ser amado ou detestado
ter bons vizinhos ou vizinhos xenófobos
o aplauso ou a vaia
Não importa se tens a conta no vermelho no Banco
Nem se apareces numa enciclopédia
De acordo. A vida não tem sentido,
mas ainda assim
emociona-me.


***


Campa


Gostava que a minha campa estivesse num parque
- não muito longe de outras campas -
cheio de pássaros
e de crianças a brincar na relva.
Um esquilo poderia pisá-la
ou um balão cheio de ar sobrevoá-la.
E gostaria também que
aos sábados à tarde
viesses conversar comigo.


***


Adições


Todos somos dependentes de alguma coisa.
Entre dose e deus só
há um o e um u de diferença.


***


Religiões


Não gosto do monoteísmo
nem da monogamia
Entre os vários deuses
é possível encontrar um benevolente
e entre os diversos amores
é possível encontrar um verdadeiro.


***


A melancolia da literatura


Disse-me então: tenta escrever algo
alegre,
algo reconfortante,
algo que possa ajudar uma pessoa
que tem cancro ou que foi atropelada por um carro

Pus-me a pensar
Pensei durante uma tarde inteira
e não me ocorreu nada de alegre
ou estimulante

Isto foi o que se deve ter passado com Shakespeare
e com Dostoievski,
com Proust e Kafka

por isso as pessoas não lêem
Só os deprimidos lêem
para confirmarem a sua depressão.



(Fontes: Poesía reunida, Lumen, 2ª edição, Barcelona, 2009. Playstation, Visor, Madrid, 2009).


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Anna Swir

 (Dez poemas)



Depois de um ataque aéreo


Saindo de um monte de destroços
dirigindo-se para o céu
cinzenta como uma parede
uma mão com cinco dedos.



***


Natureza morta


Num charco de lodo e sangue,
entre o corpo meio carbonizado de um cavalo
e o corpo meio carbonizado de um homem,
ao pé de uma conduta de esgoto destruída, um sofá com franjas, uma chaleira
e três pedaços de vidro partido,
jaz o fragmento de uma carta de amor, queimado nas margens:
"Sou tão feliz."



***


Terra e Céu


Havia aqui tantas coisas a gritar
os aviões gritavam e o fogo e a desolação
o ataque gritava
até às nuvens.

Agora a terra e o céu
estão em silêncio.



***


Estou cheia de amor


Estou cheia de amor
como uma grande árvore de vento,
como uma esponja de oceano,
como uma grande vida de sofrimento,
como o tempo de morte.



***


O meu sofrimento


O meu sofrimento
é útil para mim.

Dá-me o privilégio
de escrever sobre o sofrimento de outros.

O meu sofrimento é o lápis
com que escrevo.



***


Não posso


Invejo-te. A qualquer momento
podes deixar-me.

Eu não posso
deixar-me.



***


Protesto


Morrer
é o mais duro
de todos os trabalhos.

Velhos e doentes
deveriam estar isentos dele.



***


Isso não seria nada bom


Quando estou só
tenho medo de me virar
demasiado depressa.

O que está nas minhas costas
pode, no fim de contas, não estar preparado
para assumir uma forma adequada
para olhos humanos.

E isso não seria nada bom.



***


Quatro patas muito gordas


Sinto-me alegre como se fosse
muito gorda.
Como se tivesse quatro
pernas muito gordas. Como se saltasse muito alto
com as minhas quatro pernas muito gordas.
Como se ladrasse
alegremente e muito alto
com essas quatro pernas muito gordas.
Eis quão alegre me sinto hoje.



***


Ansiedade


Fazes entre as árvores
um ninho para o nosso amor.
Mas repara nas flores
que esmagaste.




(Fontes: 1) Talking to my body; tradução de Czeslaw Milosz e Leonarda Nathan, Copper Canyon Press; Washington, 1996; 2) Construyendo la barricada y otros poemas; tradução de Édgar Trevizo; Medusa, Chihuahua, 2021).

domingo, 5 de março de 2023

Ángel González

5 dos últimos poemas



Sempre a esperança


Esperar a desgraça
é uma forma de esperança?
Para todos os efeitos, a menos perigosa.
Aquela que nunca nos pode defraudar.


***


Leio poemas


Leio poemas ao calhas,
leio quase sem pensar no que leio.
Quando me encontro com um verso triste
sinto uma espécie de carícia na alma.
Não é que a tristeza alheia me alivie;
acontece que me sinto menos só.


***


Tem de se ser muito corajoso


Tem de se ser muito corajoso para se viver com medo.
Ao contrário do que se julga habitualmente,
o medo nem sempre é um assunto de cobardes.
Para viver morto de medo
é preciso ter, de facto, muito valor.


***


Nem só o poeta é um fingidor


Eu sou um fingidor; eu, não o poeta.
Agora fala o homem:
Sim, sou um fingidor.
Observem o meu sorriso.


***


O poema dos 82 anos


Passou quase um século.
Sou um cavalheiro muito antigo.
Ou melhor,
o que subsiste de um cavalheiro:
uns restos 
desbotados,
algum gesto
que pretende ser cortês.
É pouco, mas é alguma coisa.

Dizem que águas passadas
não movem moinhos.
Mas o rio da vida
que passou
continua a moer-me vivo,
reduzindo-me a pó
apaixonado
pela água,
por aquela água
cujo murmúrio distante
o meu coração ainda escuta.



(Fonte: Nada grave, Visor, Madrid, 2008).


domingo, 1 de janeiro de 2023

Amalia Bautista

 5 POEMAS



Borboleta-monarca



Entrou no pátio como quem cai num poço.
As suas asas bateram nas janelas
que entrincheiravam outras vidas.
Aqueles que faziam amor,
cozinhavam, dormiam, discutiam
ou amamentavam os filhos
não deram por ela.
Não conseguiu ascender, voava em círculos,
perdida e longe da sua rota,
longe dos seus pares, sem saber
que o grupo garante a sobrevivência.
No fim pôde escapar para o céu aberto,
talvez para morrer num ramo
no parque mais próximo.


***


O homem que caminha



O homem que vejo agora a andar pelo passeio
é o homem que não sei se vai ou vem.
Se chegará aqui,
se vem para partir ou talvez para ficar,
se é que vem.
Caminha de perfil, como um egípcio,
e por isso não identifico o sentido dos seus passos.
Para mim ou para longe.
Para mim ou para nunca.
Eu poderia esperar
ou descer à rua e pôr-me à sua frente.
Mas, feitas as contas, para quê
se nunca suportei os indecisos.
Fechei a minha porta dando duas voltas à chave.


***


Canto das espigas




Não cantam, isso são fantasias
dos que nunca trabalharam no campo.
São mentiras piedosas revestidas com um verniz piegas
que os artistas ou os parolos inventam,
se é que eles não são os mesmos.
Suponho que aquilo que as espigas fazem
são cortes nas mãos,
mas das feridas que sangram não se fala.


***


As boas intenções



Esta manhã saí de casa
com várias intenções, todas muito firmes:
a de devorar o mundo,
a de me tornar invulnerável
ou invisível,
de acordo com as circunstâncias,
a de negar tudo o que quero negar,
a de me afirmar.
E mais uma ainda, acima das outras,
acima de todas:
procurar-te e dizer-te que te amo.
Mas não te encontrei.


***


Lisboa



Sardinhas e azulejos,
eléctricos amarelos, calçadas onduladas
com paralelepípedos escorregadios
e o teu olhar.
Livrarias e fados
e castanhas assadas.
Uma língua mais doce e mais profunda,
e também mais triste,
e a tua língua.
O Tejo, que já é mar
e ferida e janela.
A nossa idade que avança
e a espantosa e estranha juventude
que tornamos presente ao fecharmos a porta.
O nosso amor renovado
e pastéis de nata.



(Versões minhas; fonte: Azul el agua; La Bella Varsovia, 2ª edição, Barcelona, 2022).

domingo, 4 de dezembro de 2022

Mario Montalbetti

Desculpe, a tabacaria é aqui?



Ninguém diz tudo. Ninguém diz nada.
O desejável é dizer pouquíssimo.
Calar não é mais radical.
Calar é como rapar a cabeça:
o cabelo volta a crescer.
Porém dizer pouquíssimo, dizer o mínimo
que podemos dizer,
isso é o que nos permite dizer alguma coisa.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui).

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

sábado, 8 de outubro de 2022

Patrizia Cavalli

 [Seis poemas]


Finjo esperar-te para expandir os minutos.
E fazes bem em não vir.


***


Não depende de mim,
reconheço que não depende de mim.
Dependesse de mim
e estaria numa total e maravilhosa dependência.


***


Tal como muitas das minhas meias
o meu coração já não tem qualquer elástico,
cede e deixa-me a descoberto, e eu tenho frio.


***


Quando rima, o amor
acrescenta algo a seu favor.

Amor que rima exibe,
seu mal melhor inibe.


***


Os marroquinos com os seus tapetes
parecem santos e na realidade
são comerciantes.


***


Pomba aleijada. Ridícula
pomba aleijada e disforme.
Se algum defeito têm os animais
logo se parecem com os humanos.



(Versões minhas).

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Pablo Fidalgo Lareo

Paciências



Aluguei um quarto no bairro de Santos
para passar o inverno mais frio da minha vida.
A dona da casa não fazia senão paciências.
Santos era a terra da infância.
Meninos do rio. A casa está no mar.
O comboio é uma máquina de um  mundo superior
que arrasa tudo o que fui.

Amo as pedras da rua, o modo como se resvala com a chuva,
como a cidade foi feita sem se pensar em ninguém.
No 25 de abril alguém deu ordem de disparar a um soldado
mas ele não a cumpriu e evitou uma guerra.
Amo a águia do Benfica
ao dar a volta ao estádio antes de cada jogo.

Como dizê-lo? Nada me prende a esta margem.
Se vir aqui um pouco de ódio que seja
irei para o outro lado e começarei de novo.
Se alguma vez fizer um amigo
dir-lhe-ei como é a minha terra natal
para o assustar e manter à distância.
Com o tempo aprendi que um pouco de ódio
é o início de todo o ódio.

Isto é Lisboa. Perguntam-me por que vim para cá
e isso é ir demasiado longe.
Se queres saber por que vim
deixa-me ver-te com os que nada têm.
Entra no jogo de perder tudo como eu entrei.
Isto é Lisboa: a cidade onde hei-de escrever
o livro alucinado que sempre quis escrever.

Sei que esta é a única margem
por isso ponho-me a olhar o rio sem pensar
que a minha presença aqui é uma vingança.
Penso que o que amo é a vida dupla
que todos tiveram em África e Portugal.
Também para mim se acabou.

Lembras-te do tempo do primeiro escândalo
quando parecia impossível que houvesse outro e depois outro?

Alguém disse vergonha só de fazer coisas más.
Isto não faz parte da minha vida, eu vim para ficar.
E tu, vês as palavras a saírem do rio, a baterem 
contra as águas do mar?

Habito num lugar da margem
onde podes beber quanto quiseres
sem que ninguém diga nada.
E tu, o que sentes quando me vês navegar
neste rio inavegável?


(Versão minha; original algures aqui)

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Jaime Gil de Biedma

 Pelos vistos



          Declarar-se homem pelos vistos é possível.
Pelos vistos é possível dizer não.
De uma vez e na rua, de uma vez, por todos
e por todas as vezes em que não pudemos.

          Importa pelos vistos o facto de estar vivo.
Importa pelos vistos que até a injusta força
precise, implicando as nossas vidas, desses actos mínimos
cumpridos diariamente na rua por todos.

          E será necessário não esquecer a lição:
saber, a cada instante, que no gesto que fazemos
há uma arma escondida, saber que ainda estamos 
vivos. E que a vida
pelos vistos ainda é possível.



(Versão minha; original algures na rede)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Blas de Otero

 Notícias de todo o mundo



Aos quarenta e sete anos da minha idade
dá medo dizê-lo, sou só um poeta espanhol
(dão medo os anos, isto de poeta, e Espanha)
de meados do século XX. E é tudo.
Dinheiro? Carinho é o que desejo,
diz a copla. Aplausos? Sim, mas não o ensejo.
Saúde? A suficiente. Reputação?
Má. Mas cabelo sem moderação.
Dá medo pensá-lo, no entanto apenas me lêem
os analfabetos, não os trabalhadores, ou
as crianças.
Mas já me leram. Agora ando a aprender
a escrever, mudei de classe,
precisava de uma máquina de fazer versos,
perdão, de uns versos para a máquina
e, sobretudo, paz,
preciso de paz para continuar a lutar
contra o medo,
para brindar no meio da praça
e abrir o porvir de par em par,
para plantar uma árvore
no meio do mundo,
para dizer "bom dia" sem enganar ninguém,
"bom dia, carteiro", e que me entregue uma carta
em branco, de onde voe uma pomba.



(Versão minha. Original algures na rede).

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Victor Neborak

 Café



A inspiração é um criado que satisfaz os vossos pedidos,
que encanta o café como se encanta uma serpente,
e a minha pobre cabeça, cortada por desobedecer
por um sabre turco, ferve nessa 

substância líquida. Reconheço-o:
estava numa fila de velhos peralvilhos,
magros caramelos e facas graúdas...
E eu sem estar ainda registado no paraíso!

Espírito de chocolate, temperatura
dos lábios avermelhados e das abelhas frenéticas.
O aspecto da desconhecida, semelhante ao de um lémure -

até o açúcar se divide em partes iguais.
Enquanto a minha mente diverge pelas regiões de Singapura
o meu rosto esmaga-se contra a mesa.



(Versão minha. Fonte: Una iconografía dela alma. Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral / Edições UNESCO, Málaga, 1993, p. 219).

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Juan Bonilla

 Jornal



E não se cansam de cantar a beleza do mundo os poetas:
crepúsculos e praias, bailarinas, resplendores, tralará...

O sudanês de vinte e cinco anos recebeu
uma carta registada do governo negando-lhe o visto
e instando-o a abandonar o solo norueguês
no prazo máximo de vinte e quatro horas.

E que belo vermo-nos juntos no duche ao espelho,
e que adorável a nossa baby que já cita Kierkeggards
e trauteia Lascia chi'o pianga...

Apanhou um autocarro num sítio qualquer, o primeiro que apareceu
e sentou-se na última fila e ninguém se sentou ao seu lado.

Como poderemos cansar-nos do milagre da laranjeira no nosso quintal,
dos sermões burocráticos dos melros,
ser criança e poder chamar impunemente Deus a tantas coisas.

Na sua mochila levava apenas a sua faca,
derrubaram-no facilmente depois de ter cortado
a jugular a uma rapariga nórdica

de vinte e cinco anos
que andava a ler um livro de poemas
que celebravam a existência das raparigas,
os autocarros ao amanhecer,
o conformismo burocrático dos pássaros,
as humidades verdes da paisagem,
a insólita estranheza de existir.



(Versão minha. Fonte: Horizonte de sucesos; Renacimiento, Sevilha, 2021, pp. 66-67).

terça-feira, 5 de julho de 2022

Nissim Ezekiel

 Uma palavra para o vento



Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento.
Uma outra palavra, uma frase que estivesse cheia dele
Como uma vela, versos
Que se deslocassem com a ligeireza do vento
Sobre a erva ou por entre as árvores,
Que sussurrassem descendo pela folhagem da significação,
Um som que evocasse o sentido, esse, súbito,
Pesado e baço, do fruto
E dos longos silêncios
À superfície do vento, e debaixo dele.
Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento;
Cego como Homero, meditando sobre o mar cor de vinho,
Penso sobre o vento, escavando
As nascentes de numerosos cantos que existem em mim e não viram o dia,
Revelando num lampejo a chama constante,
Um incêndio no coração do vento.
Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento.



(Versão minha. Fonte: Un feu ao coeur du vent. Trésor de la poésie indienne - Des Vedas au XXIe siècle; organização de Zéno Bianu, Gallimard, 2020, p. 170).

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Justyna Bargielska

Tradução



Da rua, através da janela, vejo a minha mãe de pé junto ao lava-loiças da cozinha
da casa em chamas, ela mesma em chamas desde há um bom bocado,
não resta muito dela, na verdade só o seu perfil. Passarão trinta anos
e a minha filha verá pela janela
da rua como ardo na casa em chamas. Nem sequer sei
se já saberá então o que está a ver.

Arranjei espaço para a morte na minha vida,
pus de lado o cobertor, a camisa de dormir, a caixa das costelas.
Não teria espaço para nenhum de vós se não tivesse arranjado
espaço para a morte. Enquanto não arranjei espaço para a morte,
para nenhum de vós tinha espaço, não tenham ilusões.
Abro uma noz e encontro as cinzas de um rato,
do meu marido e dos meus filhos, o meu prémio, a minha confirmação.



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, madrid, 2021, p. 139).

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Izet Sarajlic

 Comer uvas no autocarro para Skojé com a poetisa espanhola Clara Janés



Comer uvas no autocarro para Skojé com a poetisa espanhola Clara Janés,
passear à meia-noite pela rua Knez Mihailova com Stevan Raicovic,
tomar o primeiro café da manhã em Novi Sad com Mladen Leskovac,
abrir a caixa do correio e encontrar uma carta de Bulat Okudzhava,
cantar depois de uma leitura de poesia em Trebinje com Manolis Anagnostakis,
todas estas e mais mil coisas
só podem ser disfrutadas nesta vida.
Aqueles que afirmam que a vida é o pior que nos podia acontecer
não entenderão nunca a alegria que lateja neste poema.
Não escrevo para eles.



(Versão minha. Fonte: Una calle para mi nombre; selecção e prólogo de Juan Vicente Piqueras, Ayuntamiento de Lucerna, 2ª edição, 2003, p. 53).

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Blanca Sarasua

Envia-me uma carta



Envia-me uma carta, ainda que se perca.
Envia-me velas acesas, não sei,
um monte, por exemplo, que me olhe de cima.
Envia-me sonetos, pergaminhos,
capitéis coríntios que reforcem
esta luz da tarde que resvala.
Alguma coisa de Brahms, o mar e o seu epicentro.
Bandeiras sem manchas de cores,
que se possam pintar como se quiser.
E sobretudo ar, sem condutas, ar livre.
Por agora, a carta, ainda que se perca.



(Versão minha. Fonte: La casa del presente - 14 poetas vascos; selecção de Iñigo Linaje e Ángel Guinda, Olifante, 2021, p. 43).

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Wioletta Grzegorzewska

As línguas das partículas



O professor de química, bom conhecedor de todas as bases
e todos os ácidos, de pé frente à tabela periódica,
passava horas a meter-nos na cabeça os símbolos dos elementos.
No laboratório dava-nos lições com a linguagem das partículas,
brincava à apanhada com os átomos usando o oscilador,
com as provetas, como um alquimista, torturava o mercúrio,
calculava a chuva em número de gotas.
No seu mundo as árvores tinham anéis regulares,
e a vida era directamente proporcional à morte.



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, Madrid, 2021, p. 117).

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Marzanna Bogumila Kielar

[Luminosos amanheceres da morte,]



Luminosos amanheceres da morte,
houve uma época em que se morria em casa.
Havia tempo para nos familiarizarmos com a morte,
para praticarmos um pouco com ela, começava-se cedo
com alguma coisa de pouca amplitude, uma dor nas costas
ou a rotura de um tendão.
O corpo vai-se desatando da vida.
Lança um olhar, como se se detivesse na fronteira entre dois Estados
e perguntasse: "A qual deles pertence esta terra?"
Ainda tem algum tempo antes de uma onda poderosa e morta 
se acumular às claras sobre os ombros.
Antes que cheguem os amanheceres sem brilho
no silêncio de um mundo vazio no qual não há ilhas
nem bonecos de areia e a solidão
é já absoluta



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, Madrid, 2021, p.39).

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Igor Zidic

 Poesia



Mesmo sem pássaros
o ar haveria
de cantar



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p.299).

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Antun Branko Simic

 Eu e a morte



A morte não existe fora de mim. Ela está em mim
desde o primeiro momento: cresce comigo
a cada minuto
                  Um dia
se eu parar
                  ela continuará a crescer
em mim até me ocupar completamente
até me preencher. O meu fim
é o seu verdadeiro começo:
                  ela expande o seu reino, sozinha.



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p.168).

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Miroslav Krleza (1893 - 1981)

O diálogo de Jerusalém



- É isso? Ele é de Nazaré?
- Pois claro: a feirante ali da esquina
é a sua tia!
- E ouvi dizer que é filho ilegítimo
e que o pai anda a varrer ruas.
- Nasceu num estábulo, isso é certo.
Verdade seja dita, a origem do miúdo é problemática e pouco clara.
A mãe, diz-se, anda por aí com um velhote.
Quem poderia imaginar, minha senhora, todos estes escândalos?
- Mas adiante. E andou à escola?
Fez o liceu?
- Nem pensar!
Com certeza a senhora só pode estar a brincar!
Qual bacharelato de Deus?
Um dia destes, na rua,
deu um beijo a uma galdéria!
Anda a beber com os vadios; só os indigentes,
os cegos e os pecadores é que o seguem,
e agora começou a levar as nossas crianças por maus caminhos.
As reclamações contra ele já começaram
a chegar à polícia.
Oiça o que lhe digo, minha senhora,
esse rapaz há de acabar numa cruz!



(Versão minha. Fonte: La poésia croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutores deste poema: Mira Kuzmic e Pierre Seghers]; Seghers, s/d, p. 157).

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Petar Preradovic (1818 - 1872)

 Ao coração humano



Ao coração humano falta sempre alguma coisa;
Nunca se dá completamente por satisfeito:
Não é senhor de ter nas mãos o objecto do seu sonho
Sem que cem desejos o assaltem uma vez mais.

Desprezando o pão de cada dia, que o destino lhe dá,
Por que aconchega, no seu seio, sob a forma
Dum desejo ardente, um falcão cruel que
Não cessa de nele enterrar o bico esfomeado?

Entre o berço e o túmulo decorre um tempo
Excessivamente curto, designado vida;
Face à morte, também o coração sempre

Estremece com o mesmo desejo de sempre,
Sempre sonhando: é que a terra tem prazeres
Que o coração não saberá levar para o caixão.



(Versão minha. Fonte: La poésie croate- des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p. 103).

domingo, 15 de maio de 2022

Poesia popular croata (2)

 Estranho remédio



O cervo corre na montanha,
nos seus bosques, nos píncaros,
nos píncaros as cidades,
nas cidades um palácio, e
o meu bem amado está à mesa:
"Sentes-te doente, meu bem amado?
Então dar-te-ei um ensopado,
um ensopado de moscas,
uma costeleta de mosquito,
uma coxa de poldra,
aguardente numa peneira,
meu bem amado, para te curar!"



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihailic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p.84).

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Poesia popular croata (1)

Enganaram-no



Cidade de Senj, que as chamas te devorem!
Dentro dos teus muros servi três anos:
um ano pelas armas brilhantes,
um ano por um bom cavalo,
um ano por uma bonita rapariga.
Quando voltei para resgatar as armas brilhantes,
deram-me as velhas e ferrugentas.
Quando voltei para resgatar o bom cavalo,
deram-me uma velha pileca.
Quando voltei para resgatar a bonita rapariga,
deram-me uma velha galdéria.



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihailic e Ivan Kusan; vários tradutores [a tradução francesa deste poema é de Janine Matillon]; Seghers, s/d, pp. 85-86).

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Dinko Zlataric (1555 - 1613)

Na morte do meu filho primeiro nascido Simão e falecido
no dia três de setembro de 1592, tendo vivido um ano, 
dois meses e quinze dias!



Meu bem amado filho, por que foi então necessário
que eu te fechasse os olhos, tal como fiz, quando 
julguei que serias tu a fazê-lo a mim, defunto?
Agora que estás morto, e eu aqui permaneço,
o sol percorreu a sua órbita somente uma vez,
e a lua apenas três vezes desde a tua vinda.
Tu que foste tão breve, que nos deixaste, 
meu filho, ó toda a minha glória, todo o meu amor!
Mais rápido do que a flecha passaste
e furtaste aos nossos olhos o teu doce encanto.
Teu pai a teu rogo não mais te embalará,
não mais, no seu pescoço, sentirá os teus meigos braços.
Tu, que foste do meu coração a primeira alegria,
tu, que agora és o seu choro, a sua queixa, o seu luto.
Num tempo tão curto como mudou o meu destino, 
como de doces fez amargas todas as minhas esperanças!
A noite não virá sobre nenhum dos meus dias
sem que não me encontre em lágrimas, e não me deixará.
Porque contigo todas as minhas alegrias pereceram -
foi a luz dos meus olhos que me abandonou.



(Versão minha.  Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [Janine Matillon]; Seghers, s/d, p. 72).

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Ditos e provérbios populares croatas

 

Os tolos batem-se, os sábios bebem vinho.

*

O diabo não é tão negro como o pintam.

*

Cada um receia o seu próprio cadáver.

*

Deus nas alturas, e a justiça ao longe.

*

Primeiro de agosto, primeiro figo na boca.

*

Não vale a pena mentir ao estômago.

*

Enquanto os sábios procuram a ponte, os tolos atravessam o rio.

*

Os grandes gatunos são libertados, os pequenos enforcados.

*

É preciso medir as palavras, mais do que contá-las.

*

É bom ter amigos, mesmo no inferno.


(Versões minhas. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan: vários tradutores; Seghers, s/d, pp. 305-307).

sábado, 30 de abril de 2022

Mario Vega

 Diante do túmulo do corpo amado



A vida não é como nos contaram,
porque viver é estar sempre em guerra
e morrer dói menos.
E aquele que apostou no amor, desconhecendo
como passam os dias
paga cara a sua farsa.
Do seu desprezo ficam ruas tristes
e uma cidade distante como um domingo inglês.
Não se pode servir dois tiranos
que oferecem como dom e maldição
sombras da memória.

Se uma parte desta dor pode atingir-te
escuta-me e prossegue com a tua aventura,
seja cinza ao vento ou brasa soterrada.
Eu permaneço aqui
imóvel, silencioso, imerecido.

Tu cada vez mais distante da morte,
eu cada vez mais longe da vida.



(Versão minha. Fonte: Los últimos del XX - Antología de poesía (1980-1997); selecção de Miguel Munárriz; Luna de Abajo, Oviedo, 2020).

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Linda Gregg

 O verão numa cidade do interior



Quando me abandonam,
os homens deixam-me num qualquer lugar maravilhoso.
É sempre no fim do verão.
Ao pensar neles,
lembro-me dos lugares.
E do facto de me sentir só e feliz depois.
Desta vez foi em Clinton, Nova Iorque.
Dou as minhas braçadas na piscina pública
às seis da tarde, quando toda a gente
já foi para casa.
O céu está cinzento, o ar quente.
Percorro o caminho de regresso através da relva cortada,
deliciando-me com o seu cheiro e com as casas
de um modo tão intenso que fico de coração vazio.



(Versão minha. Fonte: aqui).