quarta-feira, 30 de março de 2022

Miguel d' Ors

Talvez nisto consista a poesia


Umas poucas palavras que possam mais que o tempo.
Talvez nisto consista a Poesia.
Umas quantas palavras que arranquem da morte,
como Jesus fez com Lázaro, as horas já vividas.
Que tragam, por exemplo, a este agora os avós
com o Leão e as vacas - a Roxa, a Morena e a Linda;
que eu volte a subir, com a espingarda ao ombro,
pelo Monte da Arcela acima
e que aqueles verões que duravam dois meses
durem toda uma vida.

                                                         15-XI-2020


(Versão minha. Fonte: Viaje de invierno; Renacimiento, Sevilha, 2021, p. 15).

sexta-feira, 25 de março de 2022

Timur Kibirov

 DOIS POEMAS


Uma velha canção sobre a coisa mais importante



Ela encheu-nos de bebida, a nossa terra natal,
e de comida mais ou menos suficiente.
E, se é verdade que nos chegou a roupa ao pelo, por outro lado
não nos bateu com toda a sua força.

Mas nós não a amávamos, tal como
ela não nos amava a nós.


***


Historiosófico



"Não podes compreender a Rússia com a tua mentalidade."
Não podes compreender a Polónia, ou a Albânia,
a Nigéria, Cuba, ou a Tasmânia,
as Caraíbas ou a Grã-Bretanha,
a Guiné Equatorial, a Áustria-Hungria,
Roma ou a Terra do Meio ou Nárnia -
elas são únicas, e são como são.

"Tudo o que podes fazer é acreditar na Rússia."
Não, tudo o que podes fazer é acreditar no Senhor.
Tudo o resto é uma fraude sem remédio.
No entanto, como decidiste tirar-lhe as medidas,
foi-nos concedida a nossa recompensa:

podes viver mais ou menos na Rússia,
desde que sirvas a Pátria e o Czar.



(Versão minha, a partir da tradução inglesa de James Womack. Fonte: Modern Poetry in Translation (War of the Beasts and the Animals - Russian and Ukrainian Poetry; 2017, nº 3, p. 170).

sábado, 19 de março de 2022

Vasyl Holoborodko

 [Os homens começaram a reunir-se]



Os homens começaram a reunir-se
todos rapados com pente zero
(deste corte também se diz que é "à maluco")
e eu não sabia
se eram todos futuros soldados
(e onde estavam os seus estandartes e tambores?)
ou simplesmente prisioneiros
(mas então por que não traziam os seus trajes festivos às riscas?)
ou se as suas mulheres lhes haviam arrancado as madeixas.
A mim disseram-me:
olha a essência;
então compreendi, que nos próprios olhos observo,
como o princípio da igualdade se materializa na vida.
Quem se lembra da clandestinidade dos guedelhudos?:
prendam-nos e tosquiem-nos.
Quem é que alguma vez escreveu um verso sobre o ramo hirsuto 
                                                                                     da macieira?
Há que podar: a) o autor
                       b) o verso
                       c) o ramo hirsuto.



(Versão minha. Fonte: Una iconografía del alma -Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral / Edições UNESCO, Málaga, 1993, p. 179.)

sábado, 12 de março de 2022

Marta Eloy Cichocka

Trinta e quatro



senti o fogo
nas minhas costas
fugi descalça
não tive tempo de
agarrar em nada
de vestir nada

de meter nada
no bolso o passaporte
o telefone um amuleto
uma pedra verde
o meu batom preferido
tudo isso

ficou para trás

e à frente

o silêncio



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán; Vaso Roto, Madrid, 2021, p. 95).
 

terça-feira, 8 de março de 2022

Timur Kibirov

 Nota bene



Fui à América. Subi ao topo dos arranha-céus.
Conversei com Brodsky, e ele disse-me para 
não autografar os meus livros na diagonal, pois 
isso é vulgar e pretensioso. Este importante conselho
foi-lhe dado pela Anna Andreyevna Akhmátova,
e agora é a minha vez, rapazes, de o passar a vós.
Que vergonha, se as coisas continuarem assim, que 
não haja aqui ninguém a quem possais dizer alguma coisa.



(Versão minha, a partir da tradução inglesa de James Womack. Fonte: Modern Poetry in Translation (War of the Beasts and the Animals - Russian and Ukrainian Poetry; 2017, nº 3, p. 171).

sábado, 5 de março de 2022

Lina Kostenko (1930 - ...)

 Matemática superior



Soma e resto da vida.
Tábua de multiplicar.
A raiz quadrada das visões do romântico.
Escrevemos dois, observamos três.
Disseminada
e vulgar
matemática
quotidiana.
A alma deseja elevar-se a um plano superior.
A alma conta o total da superfície:
o passado - o presente - os vivos e aniquilados,
a verdade - a poesia - a chuva atómica.
O dragão - as musas - o telefone - os mirtilos,
a fé - o vírus - os milhões - os nulos...
A vida opera infinitamente com os pequenos.
Todos somos únicos - também diminutos.

Mas de todos os gestos
e apertos de mão,
da mentira, conjunto liquidado,
a história - o mais completo dos ensinamentos -
calcula o ETÉREO INTEGRAL.

Das migalhas estelares mais minúsculas!

A eterna matemática superior:

        da soma dos infinitamente pequenos
        resulta o infinitamente grande.



(Versão minha. Fonte: Una iconogafía del alma. Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral/Ediciones UNESCO, Málaga, 1993, p. 89).



terça-feira, 1 de março de 2022

Mykhaylo Semenko (1892- 1939)

 Peça poética sobre si mesmo



Porque sou feliz quando encontro uma palavra
Apaixonado pela pausa adoro os intervalos de uma língua desconhecida
Sou um poeta lírico entusiasta dos extensos parênteses entre um verso e outro
Sou um sonhador visionário ainda muito mais exagerado
Sou um poeta da desolação e do júbilo depois da angústia
Sou um poeta da dor e do encanto depois do tormento mortal
Sou brando como os olhos suaves, como as sobrancelhas sedosas da amante
Sou um poeta visionário das substâncias temperadoras e do aço
Sou um lírico e um trampolim poeta das árias sonoras pausa dos cantores afinados 
                                                                                                 [e do amor apaixonado.



(Versão minha. Fonte: Una iconografia del alma. Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral / Edições UNESCO; Málaga, 1993, p. 33).