quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Desanka Maksimovic

Cobra



Sob a erva segada e seca
rastejava uma cobra.
À sua volta o prado vazio
(apenas uma flor).
Sobre ela duas, três nuvens,
o voo de um pássaro,
o sol que brilha.

Na curva da estrada, à distância,
alguém canta.
A melodia solitária emaranha-se
na erva.
Ela põe-se à escuta, atenta, a cabeça erguida
em pleno ar.
O sol brilha.

Este é o sítio onde mataram a sua mãe
com a lâmina de uma gadanha.
Ela terá a mesma sorte
quando rastejar para fora do matagal.
A sua roupagem apodrecerá
com os seus bordados
e a incandescência do orvalho.

Mesmo na eternidade
nunca mais esta cobra se aquecerá assim ao sol,
nem estes pássaros voarão assim,
nem esta flor germinará assim.
E o sol brilha.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Charles Simic, incluída em The horse has six legs - An anthology of serbian poetry; organização e introdução do tradutor; Graywolf Press, Saint Paul, 1992, p. 43).

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Manuel Martínez de Navarrete (1768-1809)

Do amor



Que é prisão e enfermidade,
dizem, o amor; eu digo
que não quero, Fábio amigo,
nem saúde nem liberdade.



(Versão minha; original reproduzido em Dos siglos de poesía mexicana - Del XIX al fin del milenio: uma antología; seleção e prólogo de Juan Domingo Argüelles, Oceano, 2001, p. 26),

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Roberto Fernández Retamar

O outro



Nós, os sobreviventes,
A quem devemos a sobrevivência?
Quem morreu por mim na masmorra,
Quem recebeu a minha bala,
A que me foi destinada, no coração?
Sobre que morto estou eu vivo,
Os seus ossos tornando-se os meus,
Os olhos que lhe arrancaram vendo
Pelo olhar da minha cara,
E a mão que não é a sua mão,
E que também não é a minha,
Escrevendo palavras apodrecidas
Onde ele não está, na vida que sobrevive?



(Versão minha; original reproduzido em Juegos de Manos - Antología de la poesía hispanoamericana de mitad del siglo XX; organização de Ángel Esteban e Ana Gallego Cuiñas, Visor, Madrid, 2008, p. 701).