segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Dieter Fringeli

Hoje



nada
nada mais
ainda nada mais
só tu
só eu
e nada no meio



(Versão minha a partir da tradução de Hans Leopold Davi reproduzida na Antología de la poesía suiza contemporánea, Los libros de la frontera, Barcelona, s/d., p. 245).

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Merry Little Christmas

 

Alexandre Sarrazola - Emanuel Jorge Botelho - Inês Dias - Luís Filipe Parrado - Manuel de Freitas - Miguel Martins - Renata correia Botelho - Vítor Nogueira - fotografia da sobrecapa de Bert Hardy - composição e paginação de Inês Mateus - Averno - Lisboa - 2012 - 23 páginas

sábado, 22 de dezembro de 2012

Silja Walter

O meu pequeno cão branco e eu



O meu pequeno cão branco e eu -
entrámos e saímos em todas as portas.
Procuramos-te a ti. Procuramo-nos a mim.
Choramos e passamos frio.

A chuva dá grandes voltas no largo.
Faz círculos em crescendo.
Não sei aonde vou nem onde estou
com o meu pequeno cão.

O mundo é grande. E tu és grande.
Onde terminam o caminho e a viagem?
Escuto o aguaceiro,
o meu pequeno cão ladra docemente.

Não te encontro. Não me encontro.
Contigo me perdi.
O meu cão olha entristecido
e aperto a minha cara contra as suas orelhas.



(Versão minha a partir da tradução de Hans Leopold Davi reproduzida em Antología de la poesía suiza alemana contemporánea; selecção e introdução do tradutor, Los Libros de la Frontera, Barcelona, s/d., p. p.71).

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Nós, os desconhecidos




A.M. Pires Cabral - A. Maria de Jesus - Alexandre Sarrazola - David Teles Pereira - Diogo Vaz Pinto - Emanuel Jorge Botelho - Inês Dias - João Almeida - José Carlos Soares - Luís Filipe Parrado - Luis Manuel Gaspar - Manuel de Freitas - Marta Chaves - Miguel Martins - Renata Correia Botelho - Ricardo Álvaro - Rosa Maria Martelo - Rui Caeiro - Rui Miguel Ribeiro - Rui Pires Cabral - Vítor Nogueira - organização de Daniela Gomes e Rui Pires Cabral - capa de Luís Manuel Gaspar - composição e paginação de Inês Mateus - Averno - Lisboa - 2012 - 97 páginas.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Óscar Cruz

Síndrome de Kafka




cinco meses depois da morte
do meu pai ainda encontramos
quem chore por ele. o meu pai,
porém, teria preferido ser
esquecido. creio que foi por isso
que o esquecemos.



(Versão minha; original reproduzido em Dejar atrás el agua. Nueve nuevos poetas cubanos; edição e prólogo de Fruela Fernández e Juan Antonio Bernier, La Bella Varsovia, Córdoba, 2011, p. 78).

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Marina Aoiz Monreal

Nós


Os nós
albergam segredos perigosos.
No seu interior
escondem-se punhais invisíveis
dardos envenenados
que trespassam a luz
em lentíssimas sequências
quando alguém escreve a palavra mão
ou a palavra vida. Os nós
não oferecem consolo. Não possuem
o brilho de um anel de casamento
nem a brancura
do primeiro dente debaixo da almofada.
Os nós
dobram as suas asas de morcego
sobre si mesmos
e escondem-se nos lentos resquícios
da geada nocturna.
Para os enfrentar
há que beber
os raios do sol da meia noite,
beijo a beijo,
e despojar-se de tudo o que se aprendeu.
Só às apalpadelas
se pode rasgar um nó
nos tenebrosos aposentos.
Só a sós,
entre o frio e o nada.



(Versão minha; original reproduzido em Nueva poesía en el viejo reyno. Ocho poetas navarros; selecção e textos introdutórios de Consuelo Allué; apresentação de Jesus Munárriz; Hiperión, Madrid, 2012, pp. 50-51).

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Joseba Sarrionandia

Quarenta nomes para fazer um soneto



William Faulkner. Alice Liddell. Buster Keaton.
James Joyce. Marilyn Monroe. Stephen Crane.
Ambroise Bierce. Marcel Duchamp. Júlio Verne.
Franz Kafka. Herman Melville. André Breton.

Humphrey Bogart. Paul Klee. François Villon.
Jacques Brel. Ezra Pound. Louis Ferdinand Céline.
Nicholas Ray. Dante Alighieri. John Wayne.
Samuel Beckett. Jonathan Swift. John Huston.

Nazim Hikmet. Juliette Greco. Boris Vian.
Edgar Allan Poe. Vladímir Nabokov.
Hieronimus Bosch. Bram Stocker. Paul Celan.

Johan Huizinga. Jean Genet. Marcel Schwob.
Edgar Spencer Dogson. Vladímir Holan.
Edward Lear. Joseph Conrad. Vincent Van Gogh.



(Versão minha a partir do original e da tradução castelhana reproduzida em El otro medio siglo - Antología incompleta de poesía iberoamericana; organização de Antonio Domínguez Rey e outros, Espiral Maior, A Coruña, 2009, p.p. 539-540. Nota: na versão que aqui utilizo (e única que conheço) como fonte da transposição para português dos nomes citados pelo poeta alguns destes surgem grafados erradamente - por exemplo, "Marcel Sohwob" ou "Vincent Vang Gogh". Presumo que se trate de um conjunto de gralhas, alheias à vontade do autor; optei, assim, por corrigir esses "erros". De resto, o próprio nome do poeta aparece escrito, nesta obra, de forma ligeiramente diferente daquela que já conhecia: "Sarrionaindia" em vez de "Sarrionandia"; mantenho esta última).

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Kwang-kiu Kim

O nascimento de uma pedra



Nessas fundas ravinas das montanhas
- pergunto-me -
existirão pedras
que nunca ninguém visitou?
Subi à montanha
em busca de uma pedra que ninguém tivesse visto
desde os tempos mais remotos.

Debaixo dos antigos pinheiros
em encostas íngremes e intransitáveis
havia uma pedra
há quanto tempo
- pergunto-me -
há quanto tempo
esta pedra coberta de musgo
está aqui?

Dois mil anos? Dois milhões? Dois biliões?
Não
De modo nenhum
Se até agora nunca ninguém viu realmente
esta pedra
ela apenas existe
aqui
a partir deste momento
Esta pedra
nasceu só
no momento em que a vi pela primeira vez



(Versão minha a partir da tradução inglesa reproduzida em This Same Sky - a collection of poems around the world, selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbacks, Nova Iorque, 1996, p.111).

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Fernando Luis Chivite

Apontamentos para um manifesto futuro, 9



Sabemos demasiadas coisas.

Sabemos tantas coisas que estamos presos
pelas coisas que sabemos.

Há armas que angustiam
quem as possui. A razão tem cárceres.

Sai daí, sê diurno. Não interrompas
a luz. Apaga a tua marca.



(Versão minha; original reproduzido em Nueva poesía en el viejo reyno. Ocho poetas navarros. Selecção e textos introdutórios de Consuelo Allué; apresentação de Jesús Munárriz; Hiperión, Madrid, 2012, p. 98).

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Fernando Luís Chivite

Epitáfio sarcástico para si mesmo



Na verdade, ainda estava vivo
quando me enterraram.

Sempre consegui enganá-los
com certa facilidade.

No entanto nunca
me serviu de nada.



(Versão minha; original reproduzido em Nueva poesía en el viejo reyno. Ocho poetas navarros; selecção e textos introdutórios de Consuelo Allué; apresentação de Jesús Munárriz, Hiperión, Madrid, 2012, p. 100).

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Leopoldo María Panero

III. O homem que matou Leopoldo María Panero
(The man who shot Leopoldo María Panero)



        O meu querido amigo Javier Barquín pensará sempre que foi ele que matou Leopoldo María Panero. Porém isso não corresponde à verdade. Ninguém tinha então valor para o fazer. O sujeito aterrorizava toda a cidade. Raptara várias mulheres e amaeaçava torturá-las. De tal maneira que me decidi nessa tarde, fui à loja de armas do Jim e comprei um revólver de calibre 45. No momento em que Leopoldo María Panero estava a tentar extorquir mais uma vez Javier Barquín, disparei à distância. Como Javier também tinha sacado uma pequena pistola, supôs ter sido ele que fizera justiça. Toda a vida acreditará que foi ele quem matou Leopoldo María Panero. Mas não foi esse o caso. Eu sou o homem que matou Leopoldo María Panero.



(Versão minha; original reproduzido em Poesía completa (1979-2000); edição Túa Blesa, Visor, 4ª ed., Madrid, 2010, p. 269).

sábado, 24 de novembro de 2012

Leopoldo María Panero

II. O homem que acreditava ser Leopoldo María Panero



      Chovia e voltava a chover sobre a casa de De Kooning, célebre pelas suas aparições. Aí, o filho mais novo de De Kooning levantou-se, nervoso, da cama, vestiu um roupão e foi até ao quarto do pai para lhe dizer que era Leopoldo María Panero. Enquanto se demorava a enfatizar o seu desgosto relativamente a O Desencanto, o filme de Chávarri, não houve outro remédio senão o de se chamar um psiquiatra. Já no manicómio, persistia no seu delírio, imaginava cenas da infância, ruas em Astorga, badaladas, cacetadas do meu pai. Depois de um rápido electrochoque, passou a acreditar que era Eduardo Haro, uma ligeira variação da primeira figura. De seguida, pôs-se a coxear e a tossir e afirmou ser Vicente Aleixandre. Entretanto, em casa de De Kooning, entre barulhos de correntes, continuaram a multiplicar-se as aparições.
 


(Versão minha; original reproduzido em Poesía completa (1970-2000), edição de Túa Blesa, Visor, 4ª edição, Madrid, p. 268).

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Leopoldo María Panero

I. A chegada do impostor que se fingia Leopoldo María Panero



       Ao amanhecer, quando as mulheres comiam morangos frescos, alguém bateu à minha porta dizendo ser e chamar-se Leopoldo María Panero. No entanto, a sua falta de firmeza na representação do papel, os seus abundantes silêncios, os seus enganos ao recordar frases célebres, o seu embaraço quando o obriguei a recitar Pound e, finalmente, o pouco encanto dos seus encantos, convenceram-me de que se tratava de um impostor. Imediatamente fiz vir os soldados: ao amanhecer do dia seguinte, quando os homens comiam peixe congelado, na presença de todo o regimento, foram-lhe arrancados os galões, os fechos de correr, e arrojado ao lixo o seu baton, para ser fuzilado pouco depois. Assim teve o seu fim o homem que se fingia Leopoldo María Panero.
 
 
 
(Versão minha; original reproduzido em Poesía completa (1970-2000); edição de Túa Blesa, Visor, Madrid, 4ª ed., p.267).

domingo, 18 de novembro de 2012

Cheryl Savageau

Por que é que eles fazem isso



O tio Jack bebe porque é índio.
A tia Rita
porque casou com um alemão.
O tio Raymond
porque as pequenas discussões passaram de moda.
O tio  Bébé
porque a Jeannie o encoraja a fazê-lo.
A tia Jeannie porque o tio Bébé o faz.
O Russel porque anda na faculdade.
O tio Jack
porque é um perfeccionista.
O Dave porque está desempregado.
A tia Rita
porque é música.
O Bert porque é casado com a tia Rita.
O Renny
porque gosta de se divertir.
O Gil porque sempre bebeu.
O Raymond
porque a Marie é demasiado esperta.
O Jack porque a Florence não o fará.
A Lucille e o Bob não bebem
porque todos os outros o fazem.
O Raymond por causa de todas as mulheres
que nunca terá.
E o Dick só porque quer esvaziar a pipa.



(Versão minha; original reproduzido em Poetry like bread; selecção de Martín Espada, Curbstone Press, 5ª ed. (ampliada), Willimantic, 2000, p. 229).

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Kurt Marti

Contra a corrente



não existiu
                        já um
que andava sobre as águas?
mais ninguém
conseguiu fazer o mesmo

mas
                       que tu
uma não-nadadora
nades contra a corrente
não é um milagre menos significativo



(Versão minha a partir da tradução espanhola de Hans Leopold Davi reproduzida em Antología de la poesía suiza alemana contemporánea, Los Libros de la Frontera, Barcelona, 1998, p.101).

sábado, 10 de novembro de 2012

Mohammed El Abdallah

Esta



Esta cabeça sem dúvida vai matar-me.
Não pára de pensar.
Expliquei-lhe mil vezes a inutilidade dos pensamentos,
demonstrei-lhe as razões para desesperar,
mas ela não pára de pensar.
Digo-lhe: está bem,
pensaremos até que o pensamento se esgote.
Então ela adormece por fim apesar de si mesma,
e acorda manhã cedo,
acende um cigarro, toma o café antes de mim
e recorda as histórias de ontem e os pensamentos de ontem.
Lavo-a, e continua a pensar.
Penteio-a, e continua a pensar.
Envio-a ao barbeiro, e continua a pensar.
Mas quando quero pensar num problema que me extenua
ou em alguma coisa que me interessa,
ela geme de dor como se lhe estivesse a bater com um machado.
Esta cabeça vai matar-me.



(Versão minha a partir da tradução espanhola de Joumana Haddad reproduzida em Allí donde el río de incendia - Antología libanesa moderna, Norteysur, Málaga, 2005, pp. 39-40).

sábado, 3 de novembro de 2012

Rainer Brambach

Vida quotidiana



Ir aonde tenha de ir
Plantar uma  árvore nova
Regar o jardim ainda que chova sem cessar
Engraxar os pneus
e testar os travões
Ler o jornal sem o desejo
de emigrar
Receber os amigos
Poder esquecer
Rosas ou galinhas?
Escrever poemas
e não fazer caso da música dos contrabaixos
do céu
que está azul ou encoberto.



(Versão minha a partir da tradução espanhola de Hans Leopold Davi reproduzida em Antología de la poesía suiza alemana contemporànea, Libros de la frontera, Barcelona, s/d., p 53.)

domingo, 28 de outubro de 2012

Mohammed Ali Chamseddin

Desordem fascinante



Nessa pequena casa, a minha, rodeiam-me vinte mil poetas, cantando em vinte mil idiomas, ao mesmo tempo, um canto mesclado. Que prazer: não compreendo nada...



(versão minha a partir da tradução espanhola de Joumana Haddad reproduzida em Allí donde el río se incendia - Antología de la poesía libanesa moderna, Norteysur, Málaga, 2005, p. 31).

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Nicolai Kantchev

Acreditem ou não



A Mãe assoma na planície lá fora.

E, acreditem ou não, a montanha é arrastada
para sul pela Mãe.

Anos e anos passaram desde então,
mas aos olhos da Mãe eu continuo a ser tão pequeno

como uma semente de mostarda.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Jasche Kessler e Alexander Shurbanov reproduzida em This same sky - a collection of poems around the world, selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbacks, Nova Iorque, 1996, p. 72).



sábado, 20 de outubro de 2012

Quando eu soube da morte do poeta Manuel António Pina


O dia já estava escuro
quando eu soube da morte do poeta
Manuel António Pina.

"Então isso faz-se?", perguntei,
incrédulo, ao escuro.

E acrescentei:
"Agora quem vai lembrar o nome do cão,
tactear as sombras dos livros,
aflorar o escândalo das nuvens
no céu?

Eu sei, o coração é um logro,
a beleza pura ilusão;
mas sem estas
e outras palavras, escuro,

como iluminar
cada segundo, cada promessa
inseparável da nossa vida?"

Então, caiu a noite.
E, significativamente,
o escuro optou por não me responder.


Luís Filipe Parrado

(19/20 de outubro de 2012)

domingo, 14 de outubro de 2012

Lisel Mueller

A história



Contas uma história:
Como o Fogo faz da Água a sua mulher

É sempre assim, dizes tu,
os opostos atraem-se

Desejam penetrar um no outro,
ser um,
assim ele queima-a com todas as forças
e ela procura afogá-lo

É o chamado amor à primeira vista
e não dói

mas passado algum tempo ela chora
e diz que ele está a destruí-la,
ele grita que não consegue respirar
debaixo de água -

Agora criem vós o vosso próprio
fim, dizes tu às crianças,
e elas assim farão, assim farão



(Versão minha a partir do original reproduzido em Alive together - new and selected poems, Louisiana State University Press, Baton Rouge, 1996, p. 145).

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Ricardo Castro Ferreira


Retrato do artista enquanto jovem


domingo, 7 de outubro de 2012

Jaan Kaplinski

[Uma vez recebi...]



Uma vez recebi um postal das Ilhas Fidji
com uma fotografia da colheita da cana de açúcar. Percebi então
que nada é exótico por si mesmo.
Não há diferença nenhuma entre apanhar batatas no nosso jardim de Mutiku
e canas de açúcar em Viti Levu.
Tudo o que existe é realmente vulgar
ou, melhor dizendo, nem vulgar nem estranho.
Terras distantes e povos estrangeiros são um sonho,
uma divagação de olhos abertos
de que alguém não vai acordar.
É o que se passa com a poesia - vista à distância
parece qualquer coisa de especial, misteriosa, festiva.
Não, a poesia é ainda menos
especial do que uma plantação de cana de açúcar ou um campo de batatas.
A poesia é como a serradura produzida por uma serra
ou como o rasto fofo e amarelo de um avião.
A poesia é lavar as mãos à noite
ou esse lenço - limpo - que a minha tia (agora morta)
nunca se esquecia de pôr no meu bolso.



(Versão minha a partir da tradução inglesa do próprio autor, de Riina Tamn e Sam Hamill reproduzida em The same sky - a collection of poems around the world, selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbacks, Nova Iorque, 1996, p. 9).

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Miron Bialoszewski (1922-1983)

Auto-retrato com alegria




Não pensem que sou infeliz.
Alegro-me por pensar.
Pensem que sou alegre.

A consciência é uma dança alegre.
A minha consciência dança
          diante da candeia da chuva
          diante das ruínas do muro
          diante do armazém de comida repleto de cabeças de couve
          diante das bocas dos meus amigos que falam
          diante da minha própria mão inesperada
          diante da escultura inacabada da realidade -
Na sumptuosidade do mais belo jogo
e da elevação do sacrifício religioso
idissoluvelmente
a minha consciência dança.

E quando a dança se interromper
como todos os flocos
irei para o céu -
onde nada se sente,
onde estava no princípio, antes de nascer,
onde estarei até ao fim, quando já não existir mais,
ali - que alegria indescritível.

...
É tudo.



(Versão minha a partir da tradução francesa reproduzida em Vingt-quatre poètes polonais; tradução de Georges Lisowski, Éditions dum Murmure, Neully-lès-Dijon, 2003, pp. 74-75).


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Abel Feu

Futebolista



Se soubesse o que sei hoje, futebolista.

Um desportivo foleiro e uma loira
ainda mais foleira à saída
dos treinos. Um brinco
na orelha esquerda e uma franja
tenaz que cai e volta a cair sobre os olhos
e que desvio - que pinta! - com esse gesto
que até os putos imitam...
                                         Enfim, vida
da boa, anúncios, golos, entrevistas,
uma vasta mansão, autógrafos e coisa e tal...

Juro-o: futebolista. Não estes versos
ordinários e prosaicos. Não estes anos
filhos da mãe. Nem as conjecturas. Nem esperar
que nunca nada aconteça...
                                           E não
poeta, não, não!, sobretudo nada de poeta,
antes outra coisa qualquer em vez deste tótó
que se põe a olhar para o que faz: a lamentar-se muito
de si mesmo, a exibir a roupa suja,
este striptease grotesco, que vergonha.



(Versão minha; original reproduzido em Feu de erratas, Renacimiento, Sevilha, 1997, pp. 49-50).

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Kurt Marti

O pão nosso de cada dia



O pão nosso de cada dia
nos dai hoje
para que não só
por pão
tenhamos de estilhaçar o peito
para que não tenhamos
de sofrer qualquer chantagem da parte dos patrões
que nos dão o pão
para que não tenhamos
de nos tornar dóceis
com medo de perdermos o nosso pão



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida na Antología de la poesía suiza alemana contemporànea; selecção, tradução e introdução de Hans Leopold Davi, Los Libros de la Frontera, Barcelona, s/., p. 99).

domingo, 23 de setembro de 2012

Salih Boat

O meu quinhão



toda a gente anda ocupada com alguma coisa
a avó a fiar lã
com as suas mãos secas e enrugadas como pepinos
deixados no campo
depois das sementes lhes terem sido extaídas,
está ocupada com alguma coisa;
o negociante que compra e vende terras
e o estudante que é avaliado
nas matérias que não lhe foram ensinadas
estão ocupados com alguma coisa;
o caixa do banco que se questiona sobre a relação
entre as suas mãos e o dinheiro que conta sem parar
e o adminsitrador que ontem casou a filha mais velha,
o piloto que se prepara para um novo voo
com a sua mala que já viu tantos países,
o bombeiro que passou um dia descansado
com as suas memórias de incêndios,
o trabalhador que acorda para fazer o turno da noite
e a sua raiva adormecida,
a galinha na capoeira anda ocupada com alguma coisa
preparando-se para os pintaínhos que parecem algodão-doce,

e o que sobrou para mim foi escrever poesia.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Yusuf Eradam reproduzida em This same sky; selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbacks, Nova Iorque, 1996, p. 180).

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Werner Bucher

Rogativa



Mörike, tu que estás
nos céus
roga por mim para que
escreva melhores poemas
do que tu
e não gire eternamente (como
tu tão maravilhosamente
giraste)
em torno do mesmo tema, sim,
Mörike,
roga por mim
para
que tenha mais sorte
no amor
do que tu
e para que não termine,
como tu,
a minha vida com o canto dos lábios descaído,
também te rogo
para que eu,
ao contrário de ti,
volte a acreditar em Deus
e que por detrás
do Papa actual
e dos milhares de movimentos de redenção
reconheça ainda o divino, roga
por mim, Mörike, para que
eu escreva
sem invejar os colegas
e as colegas mais célebres
e que todos os que
amo
cheguem aonde
querem chegar e que
os meus inimigos e adversários
não sejam atropelados
por carros, rogo-te ao mesmo tempo para que
a vida traga alegria
a todos quantos ofendi
e que o mau músico
que atropelaram
em Oberegg
ao sair do autocarro dos correios
aprenda agora
no céu de Elvis,
Bruckner e Beet-
hoven o que é boa música
e ao mesmo tempo rogo-te
que me protejas nas minhas viagens de scooter
pela região de Appenzell
e que o inesperado
se torne no esperado, também
te rogo para que preserves
o mundo dos déspotas,
feministas, políticos
e outros dirigentes, para que
suprimas a miséria
em todos os nossos mundos
arrancando os solitários
à sua solidão, os velhos
aos seus asilos
e centros de assistência,
para que cures as crianças
doentes de cancro e de sida e para
que ajas de forma a que
tu e Hölderlin, Pavese
e Alfonsina Storni, Gabriela
Mistral, Lenau e Van Gogh
se encontrem de imediato
sobre uma nuvem
na qual uma paz verdadeira
cubra as vossas almas,
sim, Mörike,
poupa-nos a Papas, arcebispos,
campos de entretenimento e a todos
esses políticos fariseus à maneira de
Helmut Kohl e Adolf Ogi,
e roga a Deus para que
ponha fim, por fim,
à ordem no mundo.
Pois então ondeará
(pelos ares) a fita azul
e todos nós saberemos
para que serve a dor, para que serve a alegria.
Roga por nós, Santo
Mörike, tal não
prejudicará a tua fama e
fará de ti um homem
que é mais do que apenas
um grande poeta.
Neste sentido, Mörike,
agora digo amén,
e louvo o Senhor.
Deus esteja contigo,
eternamente e para sempre.



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida em Antología de la poesía suiza alemana contemporánea; ed. bilingue; selecção, tradução e introdução de Hans Leopold Davi; Los Libros de la Frontera, Barcelona, s/d., pp. 209-217).
 
 
 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Ewa Lipska

[Não fui salva...]



Não fui salva pela inundação
contudo mais de uma vez toquei o fundo

Não fui salva pelo incêndio
contudo ardi durante anos

Não fui salva pelas catástrofes
contudo comboios e automóveis passaram por cima de mim

Não fui salva pelos aviões
que explodiram no ar comigo a bordo

Os muros das grandes cidades
desmoronaram-se sobre mim

Não fui salva pelos cogumelos venenosos
nem pelas balas precisas dos pelotões de execução

Não fui salva pelo fim do mundo
que não teve tempo de se ocupar de mim

Nada me salvou

EU VIVO



(Versão minha a partir da tradução francesa de Georges Lisowski reproduzida em Vingt-quatre poètes polonais, Éditions du Murmure, Neuilly-lès-Dijon, 2003, pp. 128-129).

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Albert Ehrismann

[Ontem vi...]



Ontem vi um cavalo
a rezar.
Não me pergunte como e onde,
porque estou a mentir.
Mas eu queria sinceramente ver um cavalo
a rezar
e rezar com ele
por ti.
Porque te amo.



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida na Antología de la poesía suiza alemana contemporánea; selecção, tradução e introdução de Hans Leopold Davi; edição bilingue; Los Libros de la Frontera, Barcelona, s/d, p 29).

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Günter Kunert

Inquietações



Aquele que decidiu viver
Tem de saber porque acordou
Na noite passada, para onde
Vai hoje rua após rua,
Com que propósito caiará amanhã
De branco o seu quarto.

Terá havido um grito?
Há uma finalidade?
O lugar será seguro?



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Christopher Middleton reproduzida em East Germany Poetry - an anthology; selecção de Michael Hamburguer, Carcanet Press, Oxford, 1972, p. 93).

domingo, 2 de setembro de 2012

Albert Ehrismann

Dura lição para escritores



Acredita que pode mudar o mundo?
Não.
Então por que escreve?
Porque não o posso mudar.



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida como texto de abertura da Antología de la poesía suiza alemana contemporánea; selecção, tradução e introdução de Hans Leopold Davi, edição bilingue alemão/castelhano, Los Libros de la Frontera, Barcelona, s/d., p. 5)

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Fernando López de Artieta

Piscina pública



Risos
        gritos
                rumor
de conversas sobre a relva
                jogadores de cartas
leitoras obstinadas
beijos
         ainda inocentes
de frescos adolescentes
bandos de garotos à beira da piscina
meninas
            flexíveis
                        como
juncos
jovens imigrantes
                          exibindo
                                        saltinhos acrobáticos
jovenzitas
mostrando a sua nudez explícita
(ninguém lhes explicou - coitadas -
que tapadas excitariam muito mais)
vaporizadores de bronzeado
que surgem
                 aqui
e ali
      como géiseres simpáticos

e o deus Sol que cruza lentamente o dia
dourando por igual
miúdos
gordas carecas
mamalhudas saloios
estrangeiros donas de casa condutores de domingo
mirones engatatões anoréticas culturistas
que
no final da tarde recolhem as suas coisas

                cansados
                                      esgotados
                                                              desfeitos
sorrindo

enquanto a sombra negra dos prédios
avança inexorável sobre a água...



(Grosso modo; La Isla de Siltolá, Sevilha, 2011, pp. 67-69).

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Ingemar Leckins

Preso



Vivi toda a minha vida dentro de um coco.
Era escuro e apertado,
especialmente de manhã quando precisava de me barbear.
Mas o que me custava mais era não ter maneira
de entrar em contacto com o mundo exterior.
Se não se desse o caso de alguém descobrir o coco,
se ninguém o partisse, então eu estaria condenado
a viver toda a minha vida dentro dele, e talvez até de morrer dentro dele.
          Morri dentro do coco.
Alguns anos depois encontraram-no,
partiram-no e descobriram-me encolhido e enrugado lá dentro.
          "Que desastre!"
          "Se o tivéssemos descoberto só um pouco mais cedo..."
          "Talvez assim o pudéssemos ter salvado."
          "Talvez haja por aí mais alguns presos como ele,"
disseram, e começaram a partir em bocados cada coco
que apanhavam.
           Inútil! Sem sentido! Uma perda de tempo!
Uma pessoa que escolhe viver num coco!
Uma pessoa como essa é um caso num milhão!
                    Mas eu tenho um cunhado que
          vive numa
          bolota.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de May Swenson reproduzida em This same sky, organização de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbacks, Nova Iorque, 1996, p. 152).

sexta-feira, 27 de julho de 2012

De fio a pavio



Alexandra Lucas Coelho - A. M. Pires Cabral - Ana Cássia Rebelo - Ana Salomé - Carlos Mota de Oliveira - John Mateer - Luís Filipe Parrado - Manuel Filipe - Manuel Paes - Maria da Conceição Caleiro - Pedro S. Martins - Ricardo Álvaro - Rui Miguel Ribeiro - composição e paginação de Inês Mateus - tea for one - Lisboa - 2012 - 24 páginas - pedidos & informações: t41editores@gmail.com

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Vasyl Holoborodko

Queria ser uma pessoa



Para não ter de dançar - amputou uma perna
(deixou até de visitar os amigos),

para não combater e gesticular indecências - arrancou os dedos
(era incapaz até de tirar a pele a uma maçã),

para não ouvir palavras obscenas - arrancou as orelhas
(deixou também de ouvir as belas),

para não lhe chamarem narigudo - torceu o nariz
(e ficou com ele achatado),

para não ver os sapos - furou os olhos
(já não pode contemplar as rosas),

para que não lhe escapasse alguma incoerência - cortou a língua
(também não teve mais palavras gentis para a amada).

Cada dia que passava
fazia uma operação plástica ao corpo
para ficar igual aos outros, a todos os outros.



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida em Poesía ucraniana del siglo XX - Una iconografia del alma; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech, Litoral/Ed. UNESCO, Torremolinos/Málaga, 1993, p. 175).

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Deitar a língua de fora




Abel Neves - Alexandre Sarrazola - António Barahona - David Teles Pereira - Diogo Vaz Pinto - Inês Dias - Jaime Rocha - Luís Filipe Parrado - Rosa Maria Martelo - Rui Caeiro - Tiago Araújo - ilustrações de Luís Henriques  - Lingua Morta - Lisboa - 2012 - 92 páginas - pedidos & informações: edlinguamorta@gmail.com

domingo, 22 de julho de 2012

Christine M. Krishnasami

[ao lado de um pedra...]



ao lado de uma pedra com três
mil anos duas
papoilas de hoje



(Versão minha; original reproduzido em This same sky; selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbacks, Nova Iorque, 1996, p. 100).

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Tarapada Ray

O irmão do meu bisavô



O irmão do meu bisavô tinha um passatempo peculiar -
Costumava coleccionar penas
          de diferentes pássaros
          de diferentes cores, de diferentes sítios.
O seu quarto, o corredor, a escada
Estavam cheios de milhares de penas coloridas e descoloridas.

No dia da sua morte
Um pouco antes do sol nascer, de madrugada,
O irmão do meu bisavô
          subiu ao telhado da sua casa
E lançou as penas para o ar da manhã.
As penas flutuaram nos raios dourados
          do sol nascente.
Algumas cairam por perto.
Outras foram para longe.
Outras ainda voaram até à eternidade, pelo céu.

Não, não é possível escrever uma história
          sobre este assunto
Mas algumas dessas penas continuam a voar
          pelo céu.



(Versão minha a partir da tradução inglesa do autor reproduzida em This same sky, selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbaks, Nova Iorque, 1996, p.56).

terça-feira, 17 de julho de 2012

Xuan Bello

Variações sobre o meu nome



Tu,
que poderias ser João Velho
na claridade azul de Sintra.
Lá longe, distante e amigo,
pressentes o teu senhor El-Rei
dom Sebastião.

Tu,
que percorres terras remotas
e a quem chamam Jean Vieilh.
Recordas aqueles dias
tão tristes em Auvergne
enquanto escutas pela primeira vez
- imensa e rara -
a voz do deus do rio:
Mississipi.

Tu,
John Oldman,
pirata em Tortuga:
o próprio Henry Morgan
há-de dar-te um tiro.

Tu,
que serias Juan el Viejo
lá nas terras de Sória:
lavram nos campos os bois
no outono do Criador.

E tu,
que estranho,
chamar-te Xuan Bello
e estar aqui, em Oviedo,
passando visões obscuras
para o claro asturiano.
Saber que a tua pátria
fica sempre noutro sítio:
ali onde não estás.



(Versão minha a partir do original asturiano e da tradução castelhana do autor reproduzidos em Toma de tierra - Poetas en lengua asturiana: Antología (1975-2010); organização de José Luis Argüelles, Trea, Gijón, 2010, pp. 475-477).

domingo, 15 de julho de 2012

Fatos Arapi

Esses que continuam a amar



Esses que não têm que comer,
Quando sonham com comida
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Esses que não têm fogo,
Quando sonham com o fogo
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Os insones deste mundo
Com os olhos abertos como a noite
No abismo das suas noites
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Esses que já morreram
E continuam a amar -
Deixem-nos pensar em mim e em ti.



(Versão minha a partir da tradução inglesa reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry; organização e tradução de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 178).

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Berta Piñan

À maneira de Szymborska



Chegados a este ponto
talvez tudo devesse ser mais simples,
a palavra lua não deveria nomear nada mais
do que a lua,
e os rios deveriam seguir até ao seu destino
sem serem alterados
pelas metáforas.
Talvez a palavra solidão não devesse
significar outra coisa além da ausência
de acontecimentos
e a palavra silêncio pudesse servir só
para calar os ruídos.

Com a língua talvez tudo devesse ser
mais simples, sem voltas
nem requebros, deixando-nos
com duas ou três questões
para seguir em frente:
um porquê, algum não sei.
E, depois, fechar a porta
que, neste caso,
deveria significar unicamente
fechá-la.



(Versão minha a partir do original asturiano e da tradução castelhana da autora reproduzidos em Toma de tierra - poetas en lengua asturiana: antología (1975-2010); selecção de José Luis Argüelles, Trea, Gijón, p. 445).

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Eqrem Basha

Menu Balkânico



Não ponhas a mesa, querida
Vamos jantar fora
Sair cedo
E voltar tarde
A vida aqui na Europa mudou
Vamos lá, querida, vamos sair
Beber ponche
No Admiral Bar
E um coupe royale
Na esplanada do Café Montreal
Na sala de bilhar do Benny
Tentaremos as carambolas de costas
Beberemos um cappucino
Na Cafetaria Marilyn
E um martini com azeitona no Florida Club
Não ponhas a mesa, querida
Vamos jantar fora
Na Pizzaria Miami
Comer uma pizza New Jersey
Um escaloppe viennense no Restaurante Roma
E depois iremos ao Parma's
Para uma coupe macédonienne
E quando se fizer tarde
Voltaremos para casa
Para esvaziarmos os intestinos
Numa latrina balcânica.



(Versão minha a partir da tradução inglesa reproduzida em Lightning from the depths - an anthology of albanian poetry, organização e tradução de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 218-219).

terça-feira, 3 de julho de 2012

Nel Amaro

Declaração de princípios


Para Oski S.



Um homem fala em inglês
(esse homem é meu irmão).

Outro homem fala em asturiano
(é meu inimigo).

O primeiro homem é um mineiro
(norte-americano).

O segundo homem é um patrão
(asturiano).

Nem sempre a língua nos
faz irmãos.



(Versão minha a partir do original em asturiano e da tradução castelhana do autor reproduzidos em Toma de tierra - poetas en lengua asturiana: antología (1975-2010); selecção de José Luis Argüelles, Trea, Gijón, 2010, p. 71).

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Vasyl Holoborodko

Labirinto



O autocarro vermelho há-de deter-se
e eu encontrar-me-ei no labirinto:
levarei muito tempo a descer os degraus,
gastando a sola dos sapatos,
pelo que irei à procura de um sapateiro,
entrarei com os pés descalços
pisando a pedra fria
e a desorientação será ainda maior.

Desesperado hei-de sentar-me nas escadas,
abrirei o jornal e começarei a ler
para encontrar a saída deste labirinto.
Então descobrirei um sinal:
talhado à mão indica a direcção que devo tomar;
penso, com uma alegria indizível, que eu sou o guia
e novamente hei-de pôr-me a caminho
perdendo cada vez mais a orientação.



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida em Poesía ucraniana del siglo XX - una iconografia del alma; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech, Litoral/Ed. UNESCO, Torremolinos/Málaga, 1993, p. 178).

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Edward Hirsch

Eu nunca fui capaz de rezar



Guia-me até ao porto
onde o farol jaz abandonado
e a lua range nas vigas de madeira.

Deixa-me ouvir o vento chamar por entre as árvores
e ver as estrelas irromperem, uma a uma,
como os rostos esquecidos dos mortos.

Eu nunca fui capaz de rezar,
mas deixa-me gravar o meu nome
no livro das ondas

e depois olhar intensamente a cúpula
de um céu que não tem fim
e ver a minha voz navegar pela noite dentro.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui).

sábado, 23 de junho de 2012

Wendy Videlock

Desarmada



Eu devia ser determinada e firme,
eu sei que devia, e mostrar uma cara feia;
mais uma vez falhaste na limpeza do teu quarto.
E não é só isso, também as provas
do saque da meia noite na tua cama -
cascas de amendoins partidas e m&m's
esmigalhados no sítio onde pousaste a cabeça
e, um pouco acima, o parapeito
está sobrelotado com uma girafa verde
(que espreita através do teu telescópio),
peças de dominó e um copo meio cheio
de sumo de laranja. Minha criança esfomeada,

como posso eu sentir-me desencantada com tudo isto,
este teu mundo secreto, esta tua maravilhosa desarrumação?



(Versão minha; o original pode ser lido aqui).

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Begoña Paz

A Branca de Neve envelhece



Nunca imaginei
cabelos brancos
no meu
púbis.



(Versão minha; original reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generación blogger; selecção de David González, prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby Editores, Madrid, 2010, p. 271).

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Vasyl Holoborodko

[Detestáveis sementes de erva...]



Detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva

Depois de tudo morreremos uma vez,
não somos eternos nem imortais (a matéria não desaparece
em contrapartida nós sim: eu, tu, ela, a amante, o irmão, os outros),
e qualquer semente de erva: de tomilho, sinuosa como uma áspide,
espera a nossa morte (morreremos uma vez)
para se fundir com o nosso corpo alheio exangue
(no qual fomos nós: o meu, o teu, o dele, da amante, do irmão, dos outros)
e crescerá e florescerá e dará sementes
para aguardarem então a morte dos demais (não a nossa),
porque as sementes de erva são imortais, porque são sementes de erva.

Detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva
detestáveis sementes de erva



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida em Poesía ucraniana del siglo XX - Una icinografia del alma; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech, Litoral/Edições UNESCO, Torremolinos/Málaga, 1993, p. 174).

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Ester García Camps

Identidade



esta tarde,
enquanto a telefonista
soletra os meus dados pessoais
do outro lado
do auricular,
tenho de lhe lembrar
que ester
é ester

mas sem h.

que Camps é como Campos
mas em valenciano
e que, além disso,
esse é o meu segundo
apelido,
o primeiro é García

com acento no i.

é importante
não esquecer o meu nome

uma pessoa tem de poder dizer
quem é
mesmo que na realidade

não o saiba ainda.



(Versão minha; original reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generacíón blogger; selecção de David González; prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby, Madrid, 2010, p. 58).

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Xhevahir Spahiu

Acordar tarde



Acordar tarde significa
Encontrar as flores sem orvalho, as pétalas caídas.
Acordar tarde significa
Que o amor deixou para trás uma marca indistinta.
Acordar tarde significa
Que a morte assinou longamente os teus documentos.

Mas acorda ainda assim.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 213).

terça-feira, 5 de junho de 2012

Karmelo C. Iribarren

A condição urbana


                                           Para Roger Wolfe



Detesto autocarros. A boa
educação que nos obriga
a ceder os lugares sentados
a essas senhoras
que até que se sentem
pode dar-lhes
qualquer coisa fatal.
Os empurrões. Os cheiros. Que ninguém
fume e tenhamos de aguentar
todos os pormenores
do enfarte
que deu a não sei quem.
Os anúncios publicitários
nas partes laterais.
As travagens. E muitas
outras coisas que agora calo
porque desço aqui.



(Versão minha; original reproduzido em Seguro que esta historia te suena - Poesía completa (1985-2005), Renacimiento, Sevilha, 2005, p. 37).

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Floridor Pérez

Para traduzir não é preciso saber línguas



Escreveu um lendário poeta chinês da dinastia Tang:
Abandona a tempo a tua poesia ou a tua mulher.

Um académico traduziu:
terminou o tempo da poesia amorosa.

E um psicanalista:
chega um tempo em que as pernas da mulher
deixam de ser um livro aberto.

Então vim eu
e abandonei-me o tempo todo
à minha poesia e à minha mulher.

Que era exactamente o que tinha querido dizer
o lendário poeta chinês
da dinastia de Li Po.



(Versão minha a partir do original reproduzido em Informe para extranjeros - Antología de poesía chilena contemporánea; prólogo de María Nieves Alonso; selecção de María Nieves Alonso, Gilberto Triviños, Juan Carlos Mestre e Mario Rodríguez, Diputación de Huelva, 2001, p. 130).

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Besnik Mustafaj

Poema profético



Se, em vez de Cristo e de Maomé,
A Bíblia e o Corão
Falassem do destino trágico de Tristão e Isolda,
Amantes exemplares,
Mortais neste pequeno planeta,
Seria muito mais difícil negar
O conceito de divino.



(Versão minha a partir da tradução inglesa reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry; organização e tradução de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 241).

sábado, 26 de maio de 2012

Pak Tujin (1916-1998)

Livro de poemas



Um livro de poemas aberto na areia
branco diante do mar azul.
O vento virava-lhe as páginas,
amarrotava-as uma após outra.
As palavras ardentes desse livro gravaram no seu interior
um coração belo e triste.
E essas palavras impressas transformaram-se em pássaros, começaram a voar.
Uma, depois outra;
cem, mil palavras,
alto, mais alto, cintilando, elevando-se até ao céu,
poemas brancos de pássaros, pássaros de poemas.
Trémulas pétalas de flores caíam do céu.
E esses pássaros que recitavam poemas no céu
esqueceram-se, incapazes de dizer os versos que sabiam
transformaram-se em flores a cair sobre o mar.
Então tornaram-se estrelas no céu distante.
Esses pássaros que recitavam poemas no céu
os mais belos e tristes
poemas do mundo
- recitavam os poemas do livro de modo tão fulgurante
que agora brilham, estrelas no mundo das estrelas.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Edward W. Poitras reproduzida em The Columbia anthology of modern korean poetry, edição de David R. McCann, Columbia University Press, Nova Iorque, 2004, p. 126. Esta versão é dedicada a Amélia Pinto Pais).

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Vasyl Holoborodko

[És como a areia...]



És como a areia
aperto com mais força os meus dedos.

És como um pequeno pássaro
construo para ti uma gaiola.

És como a água do rio
procuro para ti um cântaro.

Mas tu já és bosque
Mas tu já és campo
Mas tu já és caminho.



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida em Poesía ucraniana del siglo XX - Una iconografia del alma; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech, Litoral/Edições UNESCO, Torremolinos/Málaga, 1993, p. 180).

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dmitry Prigov

Diálogo nº 5



Estaline     Não há felicidade na terra!
Prigov       Não há felicidade!
Estaline     O que é que há então?
Prigov       O que é que há?
Estaline     Há Estaline!
Prigov       Há Estaline!
Estaline     E o que é Estaline?
Prigov       E o que é?
Estaline     Estaline é a nossa glória militar!
Prigov       Glória militar!
Estaline     Estaline é a maior inspiração da nossa juventude!
Prigov       A maior inspiração da juventude!
Estaline     Cantando nas batalhas e nas vitórias!
Prigov       Vitórias!
Estaline     O nosso povo segue Estaline!
Prigov       Segue Estaline.
Estaline     E o que mais é Estaline?
Prigov       E o que mais?
Estaline     Os três princípios principais.
Prigov       Os três princípios principais.
Estaline     E o que mais é Estaline?
Prigov       E o que mais?
Estaline     As cinco grandes ideias!
Prigov       As cinco grandes ideias!
Estaline     As oito grande letras!
Prigov       E como seria se deixássemos cair uma letra?
Estaline     Como seria?
Prigov       Seria Staline!
Estaline     Staline!
Prigov        E se deixássemos cair outra?
Staline       Outra?
Prigov        Seria Taline!
Taline        Taline!
Prigov        E se deixássemos cair outra?
Taline        Outra?
Prigov       Seria Aline.
Aline         Seria Aline!
Prigov       E se deixássemos cair ainda outra?
Aline         Outra?
Prigov       Seria Line.
Line          Seria Line!
Prigov       E outra?
Line          Outra?
Prigov      Seria Ine.
Ine            Ine?
Prigov       E outra?
Ine            Outra?
Prigov       Seria Ne!
Ne             Seria Ne!
Prigov       E outra?
Ne             Outra?
Prigov       Seria E!
E               Seria E!
Prigov       E outra?



(Versão minha a partir da tradução inglesa de J. Kates reproduzida em In the grip of strange thoughts - Russian poetry en a new era, selecção e organização de J. Kates, Bloodaxe Books, Newcastle, 1999, pp. 261-263).

sábado, 19 de maio de 2012

Karel Bofill Bahamonde

(vendo desenhos animados soviéticos)



vejo de novo desenhos animados soviéticos
e escuto vozes que não posso compreender
vozes que me recordam a estranha tristeza
em que crescemos
comendo como soviéticos
vestindo como soviéticos
vendo desenhos animados soviéticos como crianças soviéticas
pensando que o mundo estava numa revista Misha(1)
sem saber que Koniec(2) era o fim
que se aproximava



(Versão minha; o original aparece reproduzido em Dejar atrás el agua - Nueve nuevos poetas cubanos, selecção e prólogo de Fruela Fernández e Juan Antonio Bernier, La Bella Varsovia, Córdova, 2011, p. 87. Notas: (1) Revista infantil soviética; (2) "Fim" em polaco).

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Xhevahir Spahiu

Tradução do rio



Sento-me e traduzo o rio,
É difícil reproduzir
Esta coisa líquida,
São precisas palavras raras,
Expressões firmes,
Ritmos eternos,
Uma centena de fontes em uníssono
A contar de novo um mito antigo.
Durante toda a noite traduzi o rio.
De manhã
A minha versão tinha desaparecido.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Robert Elsie e Janice Mathier-Heck reproduzida em Lightning from the depts - An anthology of albanian poetry, Northwestwern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 213).

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Yunier Riquenes García

[Se vão continuar...]



Se vão continuar com os discursos que não seja com
palavras, que seja com a boca cosida, com as mãos
amarradas, com as pernas mutiladas, com os olhos
fechados. Se vão continuar com os discursos então
que arranquem o coração com a ponta de uma
pedra, que abram o peito. Se vão continuar com
os discursos, se por acaso os puderem continuar.



(Versão minha a partir do original reproduzido em Dejar atrás el agua - Nueve nuevos poetas cubanos; selecção e prólogo de Fruela Fernández e Juan Antonio Bernier, La Bella Varsovia, Córdoba, 2011, p. 87).

terça-feira, 8 de maio de 2012

Teresa Fornaris

A porcelana partida



A porcelana partida
caiu outra vez
Recolho as partes
emendo-as
e volto a colocá-la à beira da mesa.



(Versão minha; original reproduzido em Dejar atrás el agua - Nueve nuevos poetas cubanos; edição e prólogo de Fruela Fernández e Juan Antonio Bernier, La Bella Varsovia, Córdoba, 2011, p. 33).

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Vasyl Simonenko (1935-1963)

Dedicado aos papagaios



Vós, que lançais palavras às multidões,
Como velhos alunos da primária,
Por que vos dedicais meramente a repetir?
Onde estão os vossos próprios pensamentos?
Por acaso escondei-los por insignificantes?
Ou careceis deles por completo?
As línguas tê-los-ão murchado?

Se secaram, estais livres de responsabilidades,
É algo que se pode perdoar, no entanto...
Com as vossas línguas - é possível afiar facas
Ou varrer estábulos!
Por que razão chorais com lágrimas alheias,
E saltais sobre ideias emprestadas? -
Isso era o que queríamos saber!



(Versão minha a partir da tradução espanhola de Iuri Lech reproduzida em Poesía ucraniana del siglo XX - Una iconografia del alma; prólogo, selecção e tradução de Iuri Lech, Litoral/Edições UNESCO, Torremolinos/Málaga, 1993, p. 92).

domingo, 22 de abril de 2012

Entre a carne e o osso



























Luís Filipe Parrado, Entre a carne e o osso, Língua Morta, Lisboa.

[com capa de Inês Dias,
150 exemplares, 68pp., 9€]
pedidos: edlinguamorta@gmail.com

terça-feira, 17 de abril de 2012

Cristina Morano

Fabricante de armas

                                             (Transcrição de uma conversa real gravada com
                                              câmara oculta para uma reportagem da BBC)



E esta outra arma que aqui tenho,
dada a sua forma alongada e de fácil
manejo, pode ser utilizada
como um eficaz objecto contundente
para dispersar multidões.
Além do mais numa das pontas
incorpora uma bateria
que, accionada por este botão,
produz uma descarga feroz
de cada vez que se golpeia;
ou, se o desejar, o artefacto
pode introduzir-se na vagina
e, a partir daí, electrocutar,
sem as velhas complicações
dos instrumentos clássicos
similares no mercado.
                                   Não tenham
receio de perguntar o preço.



(Versão minha; o original aparece reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generación blogger, selecção de David González; prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby, Madrid, 2010, p. 219).

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Ali Podrimja

Se



Se um povo
Não tem poetas
Nem poesia própria
Para uma Antologia Nacional
Então a traição e o ladrar
Hão-de servir.



(versão minha a partir da tradução inglesa de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 208).

terça-feira, 10 de abril de 2012

Girolamo de Rada (1814 -1903)

Pode um beijo ser mais doce?



Era uma manhã de domingo
E o filho da nobre senhora
Foi visitar a bela donzela
Para lhe pedir uma gota de água,
Pois morria de sede.
Encontrou-a sozinha à lareira
A entrançar o cabelo.
Amavam-se, mas nenhuma palavra de amor foi trocada,
A jovem tinha um sorriso nos lábios:
"Por que tens de te ir como o vento?"
"Aguardam-me para o lançamento do disco."
"Espera só um pouco, guardei
Duas maçãs maduras para ti."
Segurando o cabelo penteado
Com uma das mãos erguida
Sobre a pele pálida das orelhas,
Ela mergulhou a outra no seu corpete
E tirou as maçãs,
Colocando-as nas mãos dele,
Ruborizando de vergonha.
Dizei-me, ó apaixonados,
Pode um beijo ser mais doce?



(Versão minha a partir da tradução inglesa reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry, organização e tradução de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 71).

sábado, 7 de abril de 2012

Fabián Casas

Sem chaves e às escuras



Era um desses dias em que tudo corre bem.
Tinha limpado a casa e escrito
dois ou três poemas que me agradavam.
Não pedia mais.

Então saí para o patamar para deitar o lixo fora
e, atrás de mim, com uma corrente de ar,
a porta fechou-se.
Fiquei sem chaves e às escuras
sentindo as vozes dos meus vizinhos
através das suas portas.
É passageiro, disse para mim;
no entanto também a morte poderia ser assim:
um patamar escuro,
uma porta fechada com a chave do lado de dentro,
o lixo na mão.



(Versão minha, o original pode ser lido algures por aqui).

quinta-feira, 29 de março de 2012

Eeva-Liisa Manner

Nada



"Não se pode viver sem amar"
"Pode-se, sim", disse
e vesti-me de negro
para o último baile de máscaras.

E tinha a boca cheia de pó
como se tivesse secado de tanto chorar
(ainda que não tenha chorado em cinquenta anos).

Não quero o vosso céu, companheiros,
as falsas promessas, os amigos fingidos,
as ruas cheias de beijos,
as mentiras de espelhos fugidios.
Quero rasgar o último selo,
a lua que não dá luz,
a noite em que não brilha nada.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Francisco J. Uriz reproduzida em Poesía nórdica, Ediciones de la Torre, 2ª edição, Madrid, 1999, p. 93).

segunda-feira, 26 de março de 2012

Ricardo Castro Ferreira

Vanitas (a lição de Marlene Dumas)



(Óleo sobre papel; 2012).

quarta-feira, 21 de março de 2012

terça-feira, 20 de março de 2012

Ricardo Castro Ferreira

Something for the weekend


(Óleo sobre papel; 2012)

domingo, 18 de março de 2012

Ana Pérez Cañamares

Meu filho



Que sou livre, dizem-me.
Porém se quisesse ter outro filho
teria de o levar ao banco da esquina
porque sua é a minha casa.
O meu menino chamaria pai ao gerente
e mãe à caixa
aprenderia a andar com uma cadeira
de rodinhas de escritório
dormiria numa gaveta dos arquivos
e eu seria apenas um parente afastado
que lhe sorriria do meu lugar na fila.
Passaria por lá de vez em quando com a desculpa de aumentar a hipoteca
só para ver como o criam
como o ar condicionado o afecta
se sabe enviar um fax
e se o gerente lhe oferece um jogo de frigideiras
pelo seu aniversário.



(vesão minha; original reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generación blogger, selecção de David González; prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby, Madrid, 2010, p. 195).

quinta-feira, 15 de março de 2012

Cristina Morano

Vergonha



O número de filhos da puta
aumenta cada dia, mas pior
é o número ainda maior dos tontos.
Eu conto-me entre os segundos,
às vezes o meu pai pergunta-me
se vou fazer alguma coisa a respeito disso;
não costumo, porém, responder-lhe,
limito-me a olhar a tv
sentada em frente da sua cara.
Deveria dizer-lhe que tem razão,
que as pessoas me dirigem o olhar
como se a uma espécie rara de animal,
como se se sentissem confortáveis
no papel do delator.
Gostaria de fazer alguma coisa para mudar,
ser mais inteligente, fumar com elegância...
esse tipo de coisas que te tornam respeitável.
Mas, no fundo, nunca seria suficiente,
os pratos continuam a cair-me das mãos.



(Versão minha; original reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generación blogger, selecção de David González; prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby, Madrid, 2010, p. 213).

terça-feira, 13 de março de 2012

Ricardo Castro Ferreira

Convite para uma decapitação


















(Óleo sobre papel; 2012)

segunda-feira, 12 de março de 2012

Maris Salejs

[aqui estamos...]



aqui estamos

a morte não nos cobriu
completamente

por isso aqui estamos



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Ieva Lesinska reproduzida em Six latvian poets, organização da tradutora, introdução de Juris Kronbergs, Arc, Todmorden, 2011, p. 133).

sábado, 10 de março de 2012

Anna Auzina

[Agora eu tenho...]



Agora eu tenho um cãozinho
chama-se Desassossego, é de uma raça amarga (mais tarde hei-de mostrar uma fotografia)
Vai comigo para o trabalho, dobrado debaixo do meu braço
segue-me tristemente até ao infantário e à noite quer sair.
Ficar por aqui ao pé da porta não serve, tem de ser para a chuva e para o vento.
Eu sei que vocês se preocupam, mas andamos só por ruas bem iluminadas
e apenas até ele ficar verdadeiramente exausto, é o melhor para todos
Assim não uiva junto à porta do quarto que lhe fechas cuidadosamente no focinho.



(Versão minha  partir da tradução inglesa de Ieva Lesinska reproduzida em Six latvian poets, selecção e organização de Juris Kronberg, Arc, Todmorden, 2011, p. 43).

quinta-feira, 8 de março de 2012

Ricardo Castro Ferreira

Um pouco da morte























(Óleo sobre papel; 2012).

terça-feira, 6 de março de 2012

Maris Salejs

[vês o que resta...]



vês o que resta dos predadores?
ossos

vês o que resta da vida?
o sol

quando tudo acaba sempre
então ainda este sol

não sei porquê
mas é



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Ieva Lesinska reproduzida em Six latvian poets, selecção e organização da tradutora; introdução de Juris Kronberg, Arc, Todmorden, 2011, p. 133).

domingo, 4 de março de 2012

Anna Auzina

Pequeno-almoço nas nuvens



às vezes é tão bom
até podíamos ter mais filhos
cães gatos hamsters
peixes tropicais bisavós passadas da cabeça
duas ou três tendas
esquis um computador
vários monitores
basta carregar tudo isso e seguir

um pequeno-almoço na erva
melhor ainda nas nuvens
é preciso comprar equipamento de piquenique

e bons ganchos
para que a corda nos possa içar
de modo seguro até ao céu
nas nuvens grelharemos salsichas
como fazemos habitualmente
e depois fotografar-me-ás
nua no céu

quando já estiverem todos a dormir nas nuvens
filhos
cães gatos hamsters
peixes tropicais bisavós malucas de todo



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Ieva Lesinska reproduzida em Six latvian poets, organização e tradução de Ieva Lesinska, introdução de Juris Kronbergs, Arc, Todmorden, 2011, p. 35).

sexta-feira, 2 de março de 2012

Ricardo Castro Ferreira

Perto do coração selvagem





















(Óleo sobre papel, 33x24; 2012).

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Juan de Lapala

Vincent



Cegam-me os teus sóis
e os teus lúcidos amarelos.
Sossegam-me a alma
as aspas "deste ninguém".
Toco por baixo da ligadura
dos teus óleos
esses ausentes recessos
que fizeste símbolo da tua dor.
Pesou demasiado a tua cruz, homem,
e sei que caíste três vezes
antes de te amputares por inteiro.
Ainda te observamos cabisbaixos,
eu e os teus tristes girassóis.



(Versão de Ricardo Castro Ferreira; o original - do livro El torturador, de 2005 - pode ser lido aqui).

Cristina Morano

La herencia

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Cristina Morano

A herança


A Tomasa Meco, in memorian



A minha mãe ensinou-me a bordar:
o dedal no dedo médio,
usar o fio em pequenas meadas,
ensinou-me a fazer o ponto de bainha dupla
e a dispor a loiça de porcelana:
primeiro as bandejas,
depois os pratos e os copos.
A minha avó ensinou-me a engomar:
o lenço de criança dobrava-se
num triângulo, como o de solteira,
só o de cavalheiro se dobrava
em forma de rectângulo.

- Então és filha de boas famílias.
- Não, sou a filha das criadas.



(Versão minha; original reproduzido em La manera de recogerse el pelo - Generación blogger, selecção de David González; prólogo de José Ángel Barrueco, Bartleby, Madrid, 2010, p. 211).

sábado, 25 de fevereiro de 2012

José Carlos Cataño

Le crocodile et Mallarmé



Eugène Mallarmé, ilustre professor do Colégio de França, publica em 1899 a sua monumental Histoire Naturelle du Crocodile Africain. Um ano mais tarde tem a oportunidade de pisar o continente negro.

Agora encontra-se em Rwonga, frente ao seu primeiro exemplar vivo da espécie. O sangue gela-lhe, de imediato, o crocodilo avança e Eugène Mallarmé sobe a uma bananeira. Erguido sobre as patas traseiras, o monstro arrasta-se e trepa.

As últimas palavras do sábio, segundo as desconsoladas testemunhas, foram:

- Mais non! Mais non! Les crocodiles ne montent pas aux arbres!



(Versão minha; original reproduzido em Campo abierto - Antología del poema en prosa en España (1990-2005), selecção e organização de Marta Agudo e Carlos Jiménez Arribas, DVD, 2005, Barcelona, p. 95).

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ricardo Castro Ferreira

Sol avesso




















(Óleo sobre papel, 33x24; 2012).

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Laura Casielles

descentralizações (i)



Enquanto uma mulher na Provença
abotoava o corpete,
cinco mulheres preparavam as suas tigelas de henna*
num harém não muito longe de Tânger.
Enquanto se escrevia sobre o Cid,
escrevia-se também o Rubaiyat.
Emquanto se travava uma guerra entre a Prússia e a Áustria,
milhares de tártaros eram expulsos da Crimeia.
Ao mesmo tempo que Carlos Magno,
Kaya-Magan.
No dia em que Gravilo Princip
assassinou o príncipe Francisco Fernando
cumpriu-se o segundo aniversário
do dia em que se autorizou a compra do Canal do Panamá.
E no ano em que morreu Winston Churchill,
Mehdi Ben Barka desapareceu em Paris em estranhas circunstâncias
e a Índia independente tornou oficial uma das suas mais de trinta línguas.
Enquanto Bolívar montava o seu cavalo,
os ingleses instalavam-se na Tasmânia.
Os fuzilamentos do 2 de Maio
não são o mesmo que o 2 de Maio de 1812,
quando os colonos desistiram do sítio de Cuautla.

Se são curiosidades, todas são curiosidades.
Se são feitos importantes, todos são feitos importantes.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui, na página 73. *Corante muito usado no norte de África e na Índia para colorir ou tatuar as mãos e o corpo das mulheres).

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Igor Estankona

O adivinho



Um ramo oscilou levemente
mas o pássaro que o mundo esperava não está,
as nuvens vieram
mas não trouxeram a chuva que a terra desejava,
uma mosca caiu
mas o peixe que o lago esconde não veio à superfície.

Assim te espero eu
fazendo cáculos e mais cálculos.

Ouve-se a música
mas não há nenhum bailarino nesta sala vazia,
um perfume expande-se
mas as macieiras não estão ainda em flor,
deitei-me com mulheres
mas não se desfez a imagem do coração.

Assim te espero eu
procurando-te em qualquer sinal.



(Versão minha a partir da tradução para espanhol de Jon Kortazar reproduzida em Un puente de palabras - 5 jóvenes poetas vascos, selecção e organização de Jon Kortazar, Centro de Lingüística Aplicada Atenea, edição bilingue euskera/espanhol, Madrid, 2005, p.121).

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Jorge Luis Borges

(Acerca da tradução: fotografia de José Manuel Teixeira da Silva)


Xadrez (II)



O rei subtil, o bispo oblíquo, a feroz
rainha, torre frontal, peão ladino
sobre o preto e branco deste caminho
tomam e deixam armas da batalha.

Não conhecem a mão predestinada
do jogador governando o destino,
não conhecem o imenso rigor
que sujeita liberdade e viagem.

Também o jogador é prisioneiro
(disse-o Omar) de outro tabuleiro
pleno de noites negras, dias claros.

Deus move o jogador e este a peça.
Que deus atrás de Deus começa a trama
feita de pó e tempo e sonho e mortes?



(Versão de José Manuel Teixeira da Silva, a partir do original em castelhano incluído em Nueva Antología Personal, 2ª ed., Bruguera, Barcelo, 1983, p. 17. Com esta tradução e com a fotografia que, segundo nota do autor, "poderia chamar-se (parece-me) "acerca da tradução"", José Manuel Teixeira da Silva associa-se à comemoração dos quatro anos deste blogue, o que registo com grande satisfação e gratidão).

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Marlene Dumas

Contra o muro



O primeiro gesto é o pior.
Desenhar uma linha divide o papel em dois.
Desenhar mapas e fronteiras faz dos vizinhos estrangeiros.
Nas culturas bélicas todas as gerações de crianças foram educadas
a pensar exclusivamente em imagens-inimigo.

A arte é uma forma de dormir com o inimigo.

Tenho imenso respeito pelos jornalistas que arriscam
as suas vidas para nos mostrarem aquilo que está a acontecer aqui e agora. Não estou a [tentar
melhorar o seu trabalho. Não sou uma repórter local. Sou uma artista de estúdio.
Viajo através da minha imaginação, ou assim deveria fazer - vivo na minha imaginação.

Não quero que destruam Israel.
Quero que se acabe com a ocupação da Palestina.
Quero que acabemos a Segunda Guerra Mundial,
Para que possamos acabar a Terceira Guerra Mundial.
Mas isso não pode ser pintado. Só os muros podem ser pintados.

Nunca encarei a pintura como uma janela ou como um espelho do mundo.
Talvez a veja mais como uma porta com o aviso Não Entrar
ou uma carta com a informação "Devolver ao remetente - Desconhecido neste paradeiro".
Ou uma fronteira.



(Versão de Ricardo Castro Ferreira. Com esta colaboração do Ricardo - um retorno aos textos-poemas de Marlene Dumas - fica concluída a série dedicada aos quatro anos deste blogue. Agora é seguir em frente. Muito obrigado a todos).

sábado, 4 de fevereiro de 2012

4 anos a tombar do trapézio (4)

E mais uma mensagem de uma leitora (muito obrigado):

{anita}:
"Muitos parabéns! O Trapézio é um dos meus blogues favoritos, uma dádiva para quem gosta de ler boa poesia. Continuação de bom trabalho:)"

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

4 anos a tombar do trapézio (3)

Mensagens, comentários & um desafio de leitores (muito, muito obrigado):


Vasco Barbedo Nabais:
"Olá e parabéns pelos 4 anos.
Cada vez gosto mais de poesia à medida que vou lendo o seu blog (diariamente). É o único blog que conheço deste género, que tem um programa e que se comprometeu até ao fim (4 anos é muito). Vou descobrindo novos nomes e fico surpreendido: há tanta gente, de tantos países, que vive a poesia e o mundo, e eu nem sabia. Um dos poemas mais bonitos que conheço li-o aqui, de Jerzy Ficowski, que acaba lindamente: "mesmo que eu chegue atrasado / eu quero chegar a tempo." Só podia assim ser pela tradução que é. Parabéns!"

josé luís:
"parabéns!
leio sempre - e aqui descobri muitas palavras outras.
obrigado.

este é para si:
(e um desafio em tradução)


1(a

le
af
fa
ll

s)
one
l

iness


{e.e. cummings}"

Inteligência, coragem, amor, liberdade, ternura, delicadeza...

Wislawa Szymborska em português (europeu, e que eu conheça):

1) Paisagem com grão de areia, tradução de Júlio Sousa Gomes, Relógio D'Água, Lisboa, 1988.

2) Alguns gostam de poesia. Antologia, (poemas de Wislawa Szymborska e de Czeslaw Milosz), selecção, introdução e tradução de Elzbieta Milewska e de Sérgio das Neves, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2004.

3) Instante, tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, Relógio D'Água, Lisboa, 2006.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

4 anos a tombar do trapézio (2)

Parte de uma mensagem e uma tradução de José Carlos Barros:

"(...)
Sou amigo de um poeta cubano (Edel Morales) cuja poesia muito particularmente admiro. O Edel, já há uns tempos, pediu-me que lhe traduzisse um poema. É o que te envio em resposta ao teu desafio: o original e a tradução de "Viendo los autos pasar hacia occidente".
(...)"



Vendo os automóveis a passar em direcção do Ocidente



As ruas das pequenas cidades do centro de Cuba,
habitualmente buliçosas e doces,
ficam vazias nos meses de inverno.
Eu vivi essa pesada quietude.
Os estudantes tinham partido à descoberta do mundo
e uma paz, uma estranha e larga ausência,
atravessa as paredes e entra nos edifícios.
Os clubes, as casas de cultura, os campos desportivos
assemelham-se a uma cena, cuidadosamente preparada,
que espera o regresso dos actores para a continuação das filmagens.
Nas pequenas cidades do centro de Cuba
tudo é espera e ausência nos meses de inverno.
Eu vivi essa pesada quietude.
Noites de fevereiro na esquina deserta de Libertad e Paseo
vendo os automóveis a passar na direcção do Ocidente.
Como quem vê uma rapariga de pele muito limpa e cabelos negros
passar, abrindo o desejo, na direcção de outro homem.



*****


Viendo los autos pasar hacia occidente



En las pequeñas ciudades del centro de Cuba
las calles, habitualmente bulliciosas y dulces,
se quedan vacías en los meses de invierno.
Yo he vivdo esa pesada quietud.
Los esudiantes se han marchado a descubrir el mundo
y una paz, una extraña y larga ausencia,
llega hasta las paredes y penetra al interior de los edificios.
Los clubes, las casas de cultura, los campos deportivos,
semejan un set, cuidadosamente preparado,
que espera el regreso de los actores para continuar la filmación.
En las pequeñas ciudades del centro de Cuba
todo es ausencia y espera en los meses de invierno.
Yo he vivido esa pesada quietud.
Noches de febrero en la esquina vacía de Libertad y Paseo,
viendo los autor pasar hacia Occidente.
Como quien ve a una muchacha de piel muy limpia y cabellos negros
pasar gustosa hacia otro hombre.



Poema de Edel Morales; tradução de José Carlos Barros.


(Muito obrigado).