quinta-feira, 31 de março de 2011

Jaroslav Seifert

Pequena canção da noite


Para Vladimír Holan


As gatas irrompem das águas-furtadas
e tornam-se verdes na noite.
Eu procurava em vão uma  palavra nova
para isso a que os outros chamam sonho.

Para esta quimera, coisa ou instante,
que ultrapassa os limites da tua realidade
e depois - para te submeter ao seu próprio império -
não chega quase a ter corpo.

Para isso que é um simples murmúrio
e se dilacera a cada choque,
assim como um pão de gaze ligeiro
que, rente à tua fronte, flutua no ar.

Isso que, com o sangue, chega ao rosto
e faz sonhar as jovens raparigas
logo que, confessando-se à almofada,
se escondem sob os cobertores.

Para isso que surge assim que as tuas mãos
cobrem os teus olhos; isso que quase
a tua orelha não ouve, quando há um suspiro -
muito baixo - num recolhimento solitário.

Para esses olhos e esse olhar, enfim,
com os quais uma senhora me deslumbrou.
E com os quais, desde então, eu sonho ainda,
balbuciando versos comovidos.

Velar sem prazo, pela dor:
nada me impedirá de dormir mal.
A cidade? Dorme. Lá em baixo, o dique
purifica o ouro pálido das estrelas.



(Versão minha a partir da tradução francesa de Petr Král, incluída na Anthologie de la poésie tchèque contemporaine, Gallimard, Paris, 2002, pp. 26-27). 

terça-feira, 29 de março de 2011

Ricardo Castro Ferreira

Um silêncio de bronze





















(Óleo sobre papel, 2011- colecção particular)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Charles Simic

Um livro cheio de imagens



O meu pai estudava teologia por correspondência
E era a época de exames.
A minha mãe fazia renda. Eu sentava-me sossegado com um livro
Cheio de imagens. Caiu a noite.
As minhas mãos ficaram frias de tocar as caras
De reis e rainhas mortos.

Havia uma gabardine negra
[no quarto de cima
A balouçar no tecto,
Mas o que faria ali?
As grandes agulhas da mãe cruzavam-se velozmente.
Eram negras
Como o interior da minha cabeça nessa altura.

As páginas que virava faziam um som de asas.
"A alma é um pássaro", disse ele uma vez.
No meu livro cheio de imagens
Uma batalha fervilhava: lanças e espadas
Pareciam uma floresta no inverno
Com o meu coração cravado e sangrando nos ramos.



(Versão inédita de António Ladeira; o original pode ser lido aqui).

terça-feira, 22 de março de 2011

Ricardo Castro Ferreira

O boi da paciência
































(Acrílico sobre papel, 2011)

domingo, 20 de março de 2011

Louise Glück

Felicidade



Um homem e uma mulher sobre uma cama branca.
É de manhã. Penso
Que acordarão em breve.
Na mesa de cabeceira há uma jarra
com lírios; a luz do sol
inunda as gargantas.
Vejo-o virar-se para ela
como que para dizer o seu nome
mas em silêncio, bem fundo na boca dela -
No parapeito da janela,
uma, duas vezes,
um pássaro lança o seu pedido.
E então ela estremece; o corpo dela
enche-se do ar dele.

Abro os meus olhos; olhas para mim.
Quase sobre este quarto
o sol desliza.
Olha a tua cara, dizes,
e viras para mim o teu rosto
como um espelho.
Estás tão calmo. E a roda ardente
passa suavemente sobre nós.



(Versão inédita de António Ladeira; o original pode ser lido aqui).

sexta-feira, 18 de março de 2011

quarta-feira, 16 de março de 2011

Juan Bonilla

Epitáfio do apaixonado



Se alguém quiser escrever a minha biografia
não há nada mais simples.
À sua disposição tem apenas duas datas:
a do dia em que te conheci
e a daquele em que te foste.
Entre uma e outra decorreu a minha vida.
O que sucedeu antes, esqueci-o.
O que acontece agora, carece já de importância.



(Versão minha; poema incluído em Efectos secundarios - antologia poética, Anaya, Madrid, 2ª edição, 2008, p. 12).

terça-feira, 15 de março de 2011

Ricardo Castro Ferreira

What is the word




(Acrílico sobre papel, 2011 - colecção particular)

domingo, 13 de março de 2011

W. S. Merwin

A minha mão



Repara como o passado não terminou
aqui no presente
está sempre acordado
nunca à espera
é a minha mão agora mas não o que continha
não é a minha mão mas o que continha
é o que recordo
mas nunca é bem igual
nenhum outro o lembra
uma casa há muito transformada em ar
a vibração de pneus sobre uma estrada de empedrado
luz fria num quarto que desapareceu
o cintilar do papa-figos
entre uma vida e outra
o rio que uma criança viu.



(Versão inédita de António Ladeira; poema do livro The shadow of Sirius, Copper Canyon Press, Port Townsend, 2009, p 74).

quarta-feira, 9 de março de 2011

Ricardo Castro Ferreira

A Borbulha do Chacal




(Acrílico sobre papel, 2011 - colecção particular)

segunda-feira, 7 de março de 2011

Charles Simic

O quarto branco



O óbvio é difícil
De provar. Muitos preferem
O que se esconde. Eu preferi-o, também.
Escutei as árvores.

Tinham um segredo
Que se preparavam
Para me revelar -
E não o fizeram.

Veio o verão. Cada árvore
Na minha rua tinha a sua própria
Scherezade. As minhas noites
Eram parte das suas loucas

Histórias. Entrávamos
Em casas escuras,
Sempre em mais casas escuras,
Caladas e abandonadas.

Havia alguém de olhos fechados
Nos andares de cima.
O medo disso, e a maravilha,
Tiravam-me o sono.

A verdade é nua e fria,
Disse a mulher
Que vestia sempre de branco.
Não saía do seu quarto.

O sol indicou uma ou duas
Coisas que tinham sobrevivido
Intactas, à longa noite.
As coisas mais simples,

Díficeis na sua evidência.
Não faziam ruído.
Era o género de dia
A que as pessoas chamavam 'perfeito'.

Deuses disfarçando-se
De ganchos negros de cabelo, um espelho pequeno,
Um pente a que faltava um dente?
Não! Não era isso.

Apenas as coisas tais como eram,
Sem pestanejarem, ali deitadas, mudas
Naquela luz branca -
E as árvores à espera da noite.



(Versão inédita de António Ladeira; o original pode ser lido aqui; há, ainda, um pequeno filme de Noush Anand sobre a primeira estrofe do poema, que se pode ver aqui).

sábado, 5 de março de 2011

R. J. Ellmann

Para um poeta frustrado



Isto é para dizer
Que eu sei
Que gostarias de andar pelos bosques,
A viver uma vida de poeta,
Em vez de estares aqui a uma mesa de fórmica
Num debate sobre as evidentes particularidades das vantagens
[e compensações oferecidas aos funcionários desta faculdade,
Também eu gostava que andasses pelos bosques
Porque, acredita, não tem piada nenhuma ter um poeta frustrado
No Departamento de Recursos Humanos.
Nos poemas que escreveste que eu li transparece sempre a ideia
[de seres inteligente e decente e paciente de um modo
Nada evidente para nós neste serviço,
E assim, sabendo como os poetas são capazes de fazer de um problema
[uma festa,
De cultivar flores numa cama de bebedeiras, divórcio e desespero,
Dou-te este cheque relativo a duas semanas de ordenado
E peço-te que esvazies hoje a tua secretária
E que vás para casa
E escrevas um poema
Com um sapo verdadeiro
E ameixas no frigorífico
Tão doces e tão frescas.



(Versão minha; original reproduzido em Good poems for hard times, selecção e introdução de Gerrison Keillor, Viking, Nova Iorque, 2005, p. 110).

sexta-feira, 4 de março de 2011

Ricardo Castro Ferreira

Uma comunicação académica





(Óleo sobre tela, 2010 - colecção particular)

quinta-feira, 3 de março de 2011

Louise Glück

Poema de amor



A dor serve sempre para alguma coisa.
A tua mãe faz malha.
Despacha cachecóis em todos os tons de vermelho.
Eram para o Natal, e mantinham-te quente
enquanto ela casava, uma vez e outra, levando-te
consigo. Como poderia ter dado certo
se ela escondeu o seu coração de viúva todos esses anos
como se os mortos pudessem regressar.
Não admira que sejas como és,
com medo de sangue, as tuas filhas
como paredes de tijolo, uma após outra.



(Versão inédita de António Ladeira; o original pode ser lido aqui).