segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Kadyr Myrzá Alí

Primeiro canto lírico



O invejoso morre para
Não sentir mais a sua ansiedade.
Batyr* morre na batalha
Cumprindo o seu dever.

Os bandidos morrem quando
Não conseguem sacar o punhal.
As belas morrem nos enlaces,
Afogadas na emoção.

O corcel morre na estepe.
O pó estende-se atrás dele.
O poeta morre, maravilhado,
E o seu verso não o pode salvar.



*Batyr: guerreiro épico casaque.


(Versão minha a partir da tradução castelhana de Alexandra Cheveleva e Iván Martín Cerezo incluída na Antología de la poesía moderna en Kazajstán; Visor, Madrid, 2020, p. 15).

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Raúl Gómez Jattin

Exorcismo



Os habitantes da minha aldeia
dizem que sou um homem
desprezível e perigoso.
E não andam muito enganados.

Desprezível e perigoso.
Isso fizeram de mim a poesia e o amor.
Senhores habitantes
Tranquilos
que só a mim
costumo causar dano.



(Versão minha; original reproduzido em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Óscar Ayala, introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, p. 223).

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Ivan Hobson

O nosso vizinho



Todas as famílias que viviam no nosso pátio
tinham uma carrinha de caixa aberta
com um autocolante do sindicato na traseira

e, em miúdo, eu admirava-as
tal como, julgava, os nossos soldados
deviam ter admirado Patton
e os tanques Sherman.

Uma vez disseste-me
que os russos não conseguiriam conquistar-nos,
não com cidades como as nossas,
cheias de ferro e de trabalhadores temperados
pelos fornos das fundições e das fábricas.

Não foram os russos que vieram;
foi o contrato, a greve,
as sucessivas dispensas que foram rebentando
até que chegou a tua vez.

Continuo a lembrar-me de ti
a carregares as coisas para partires,
o autocolante do sindicato raspado
com uma espátula,

as pontas da lona branca estendida
sobre a caixa da carrinha
a adejar enquanto te afastavas.



(Versão minha; original reproduzido aqui).