sábado, 29 de janeiro de 2022

Alberto Szpunberg

 Também quando se come se fala



Neste prato esmaltado cabe toda a sopa que ainda fumega,
o raio de sol fere o jogo do vapor no ar
e tu ficas a olhá-lo, em silêncio.
Colocas a colher na borda do prato,
lentamente, como se temesses que o ruído despertasse alguma recordação.
À tua frente a tua filha sorve a sopa
e com um fio de massa entre os lábios pergunta-te se hoje é amanhã.
Hoje é hoje, dizes-lhe, e amanhã é amanhã, mas sorris
e ensinas-lhe que a colher pode flutuar na sopa como um barco,
um barco pesado e fumegante que sabe ir e voltar, voltar também.


(Versão minha: Fonte: Nueva poesía argentina; selecção e introdução de Leopoldo Castilla, Hiperión, Madrid, 1987, pp. 11-12).

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Jean Franco López

 O impossível



Que Deus seja uma negra faminta
e os papas morram na pobreza;
que as rosas nasçam sem espinhos
e as rãs tenham cabelos loiros;
que os políticos não façam mais promessas
e os comerciantes sejam exactos na pesagem;
que os argentinos se mostrem modestos
e os cubanos não tenham opiniões;
que os polícias ofereçam guloseimas
e os médicos confessem a sua ignorância;
que os jornais do governo critiquem
e a oposição valorize os progressos;
que em Deus se reconheça algum defeito
e se descubra uma virtude do Diabo.



(Versão minha. Fonte: Diez poetas cubanos; organização de Juan Nicolás Padrón; DECO McPherson, Miami, 2019, p. 18).

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Ilya Kaminsky

 Durante a guerra fomos felizes



E quando as casas dos outros foram bombardeadas, nós

protestámos
mas não o suficiente, opusemo-nos mas não

o suficiente. Eu estava
na minha cama, em redor da minha cama a América

estava a desabar: casa invisível a seguir a casa invisível a seguir a casa invisível.

Pus uma cadeira cá fora e olhei o sol.

No sexto mês
do desastroso reinado na casa do dinheiro

na rua do dinheiro na cidade do dinheiro no país do dinheiro
o nosso grande país do dinheiro, nós (perdoem-nos)

fomos felizes durante a guerra.



(Versão minha; original aqui).

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Nicolás Guillén

 Digo que não sou um homem puro



Não vou dizer-te que sou um homem puro.
Entre outras coisas
falta saber se o puro existe.
Ou se, digamos, é necessário.
Ou possível.
Ou se sabe bem.
Por acaso já provaste a água quimicamente pura,
a água do laboratório,
sem um grão de terra ou de esterco,
sem o pequeno excremento de um pássaro,
a água feita apenas de oxigénio e hidrogénio?
Bah! que nojo.

Não te digo pois que sou um homem puro,
não te digo isso, pelo contrário.
Amo (as mulheres, naturalmente,
pois o meu amor pode dizer o seu nome)
e gosto de comer carne de porco com migas,
e grão-de-bico e enchidos, e
ovos, frangos, carneiros, perus,
peixe e marisco,
e bebo rum e cerveja e aguardente e vinho,
e fornico (mesmo de estômago cheio).
Sou impuro, que queres tu que te diga?
Completamente impuro.
No entanto,
penso que há muitas coisas puras no mundo
que não são mais que pura merda.
Por exemplo, a pureza do nonagenário virgem.
A pureza dos noivos que se masturbam
em vez de se deitarem juntos numa pousada.
A pureza dos colégios internos onde
a fauna pederasta
abre as suas flores de sémen transitório.
A pureza dos clérigos.
A pureza dos académicos.
A pureza dos linguistas.
A pureza dos que asseguram
que temos de ser puros, puros, puros.
A pureza dos que nunca tiveram blenorragia.
A pureza da mulher que nunca lambeu uma glande.
A pureza daquele que nunca sugou um clítoris.
A pureza da que nunca pariu.
A pureza do que nunca procriou.
A pureza do que golpeia o peito, e
diz santo, santo, santo,
quando é um diabo, diabo, diabo.
Enfim, a pureza
de quem não chegou a ser suficientemente impuro
para saber o que é a pureza.

Ponto final, data e assinatura.
Assim o deixo escrito.



(Versão minha. Fonte: Poesía cubana del siglo XX; selecção e notas de Jesús J. Barquet e Norberto Codina; prólogo de Jesús J. Barquet; Fondo de Cultura Económica, San Lorenzo (México), 2002, pp. 130-131).