sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Tony Harrison

"Não existia nenhum artista na família e quando me perguntavam de onde me vinha o dom da poesia, respondia sempre que tinha dois tios, Joe e Harry, e um era gago, o outro mudo."
(Citação extraída de uma entrevista dada pelo poeta ao Público, publicada a 20 de Junho de 1998, e utilizada por Manuel Portela como epígrafe do seu posfácio ("Leitor versus poema") à tradução da sua responsabilidade de V., poema de Tony Harrison editado pela Antígona (Lisboa, 1999, p. 61-69).)

Tony Harrison

Hereditariedade


É um mistério como te tornaste poeta!
Onde é que foste buscar esse talento?

Eu disse: tive dois tios, Joe e Harry -
um era gago, o outro mudo.



(versão minha)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Czeslaw Milosz

Janela



Ao romper do dia olhei pela janela e vi uma jovem macieira
translúcida na claridade.

E quando olhei de novo, ao romper do dia, uma macieira carregada com
frutos ali permanecia.

Muitos anos terão provavelmente passado, nada recordo no entanto do que
se passou no meu sono.



(versão minha, a partir do inglês).

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Tadeusz Ròzewicz

Trança


Depois de rapadas as cabeças
de todas as mulheres do transporte
quatro homens com vassouras feitas de ramos de vidoeiro
varreram
e juntaram o cabelo

Por detrás do vidro limpo
o cabelo desses que foram sufocados em câmaras de gás
jaz crespo
há alfinetes e molas
neste cabelo

O cabelo não é atravessado pela luz
não é separado pela brisa
não é tocado por nenhuma mão
por chuva ou por lábios

Em grandes caixas
as nuvens de cabelos secos
desses que foram sufocados
e uma trança definhada
uma trança com uma fita
puxada na escola
por rapazes maus.



(versão minha a partir da tradução inglesa de Adam Czerniawski).

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Tadeusz Rózewicz

Um poema de Tadeusz Ròzewicz, traduzido por Jorge Sousa Braga aqui.

Tadeusz Ròzewicz

Que sorte...



Que sorte posso apanhar
bagas no bosque
pensei que
não existiam bosques ou bagas.

Que sorte posso deitar-me
na sombra de uma árvore
pensei que as árvores
já não davam sombra.

Que sorte estou contigo
o meu coração bate tanto
pensei que o homem
não tem coração.



****



O sobrevivente



Tenho vinte e quatro anos
levado para a matança
sobrevivi.

Os sinónimos seguintes esvaziaram-se:
homem e fera
amor e ódio
amigo e inimigo
trevas e luz.

O modo de matar homens e animais é o mesmo
eu vi-o:
camiões carregados de homens
que não seriam salvos.

As ideias são apenas palavras:
virtude e crime
verdade e mentiras
beleza e fealdade
coragem e cobardia.

A virtude e o crime pesam o mesmo
eu vi-o:
num homem que era ao mesmo tempo
criminoso e virtuoso.

Procuro um professor e um mestre
possa ele restituir-me a vista a audição a fala
possa ele nomear de novo objectos e ideias
possa separar as trevas da luz.

Tenho vinte e quatro anos
levado para a matança
sobrevivi.



(versões minhas, a partir da tradução para língua inglesa de Adam Czerniawski).

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Sarah Wardle

Ao Leitor


As palavras que escrevo tornam-se outro mundo,
onde sou ao mesmo tempo o poema e o autor,
o criador, o que decide que luz é convocada,
e que palavra é proferida pelo enunciador,
e neste lugar virtual o amor é possível,
e tudo é melhor num universo paralelo,
e acontece num planeta do tamanho de um seixo,
quando eu e tu invisivelmente movemos a terra,
mas este poema é apenas um entre muitos em todas
as páginas perdidas nas prateleiras da biblioteca,
e este planeta gira em volta de uma infinidadede
outros mundos e de outras pessoas,
e o meu seixo jaz na praia no meio de milhões,
onde podes escolhê-lo e fazê-lo depois deslizar no mar.



(versão minha; original in Anvil New Poets 3, Anvil Press Poetry, London, 2001, p. 146.)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Antonio Martínez Sarrión

Páram


Tudo passa. Saudades, gargalhadas,
calafrios, dores de dentes,
um ou outro duelo, ficar
pendurado no carro numa ribanceira
até que chegue a salvar-te a grua,
que te embarguem, que cases um filho,
que certa manhã não sintas o corpo,
e não engravides e flutues.
Que não te devolvam
aquele livro emprestado, tão único.
Que te chegue a gripe
não uma vez, mas cinco em todo um inverno.
Acontece tudo e resulta igual. E por cada
percalço que passas, um gozo se anuncia,
ou um esquecimento, ainda que tarde o seu.
Acontece de tudo,
um dia ao acaso, com sol ou nublado
e, o que é mais sacana,
à hora intempestiva
- não nasceste para arrogante -, tens que marchar.



(versão minha; original reproduzido in Metalinguísticos y sentimentales - Antologia de la poesía española (1966-2000), introdução, notas e selecção de poemas de Marta Sanz Pastor, Biblioteca Nueva, Madrid, 2007, pp. 106-107).

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Jorge Urrutia

Descobrimento do Mediterrâneo



Isto é o mar. E ele. Uma evidência.
Por quê explicar o símbolo preciso,
esse significar
que para além do fim refere
a ambição do silêncio?

Isto é o mar. E ele que o contempla
sabe que não é o mar que lhe importa,
mas o sabor a vida que a seu lado flui.



(versão minha; original in Metalinguisticos y sentimentales - Antologia de la poesía española, introdução, notas e selecção de Marta Sanz Pastor, Biblioteca Nueva, Madrid, 2007, pp. 266-267)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Yehuda Amichai

Esquecer alguém


Esquecer alguém é como esquecer a luz do quintal acesa
fica ligada por isso durante todo o dia seguinte

Mas é a luz que te obriga então a recordar.


****


Conheço um homem


Conheço um homem
que fotografou a paisagem que avistou
da janela do quarto onde fez amor
e não o rosto da mulher que aí amara.


****

Um cão depois do amor


Depois de me deixares
Consenti que um cão me farejasse
O peito e a barriga. Ele vai cheirar-me à vontade
E partir à tua procura.

Tenho esperança de que arranque os
Testículos ao teu amante e lhe corte o pénis à dentada
Ou pelo menos
Que me traga as tuas meias entre os dentes.


(versões minhas, a partir das traduções inglesas de Chana Bloch)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Agustín Delgado

Em privado



Já faz tempo
que não escrevo poemas

Antes gostava
de ter a folha diante dos olhos
e contemplar o entardecer.

Agora
enche-se-me pelas noites a cabeça de ruído
um ruído raro
e vejo palavras infinidade de libélulas
desaparecem revolteando até se perderem

e perco-me eu
e caio sem respiração no anfiteatro da noite

e acordo
com os músculos presos.

Quando vou gritar
uma mão branquíssima baixa lentamente
e tapa-me a boca.



(versão minha; original in Metalinguísticos y Sentimentales - Antología de la poesía española (1966-2000), introdução, notas e selecção de poemas de Marta Sanz Pastor, Biblioteca Nueva, Madrid, 2007, pp. 151-152)

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Adam Zagajewski

Lume



Provavelmente sou um homem vulgar da classe
média, crente nos direitos individuais, a palavra
"liberdade" é simples para mim, não significa
a liberdade de nenhum grupo em particular.
Politicamente ingénuo, com uma educação
mediana (breves momentos de visão clara
são o seu maior sustento), recordo
o ardente apelo desse lume que abrasa
os lábios da multidão sedenta e queima
livros e incendeia a pele das cidades. Eu costumava
cantar essas canções e sei como é magnífico
caminhar com os outros; mais tarde, a sós,
com o sabor das cinzas na minha boca, ouvi
a voz irónica da mentira e o coro a gritar
e quando toquei a minha cabeça pude sentir
o arqueado crânio do meu país, o seu limite opressivo.


****



Um poema veloz



Ouvindo cantos gregorianos
seguia num carro veloz
numa auto-estrada de França.
As árvores precipitavam-se para o passado. As vozes
dos monges cantavam louvores a um deus invisível
(ao amanhecer, tremendo de frio numa capela).
Domine, exaudi orationem meam,
vozes masculinas suplicando calmamente
como se a salvação fosse emergir no jardim.
Para onde ia eu? Para onde ia o sol?
A minha vida estendia-se esfarrapada
pelos dois lados da estrada, frágil como o papel de um mapa.
Na doce companhia dos monges
fiz o meu caminho em direcção às nuvens, ao profundo,
alto, denso azul,
em direcção ao futuro, ao abismo,
engolindo as ásperas lágrimas do granizo.
Longe da manhã. Longe de casa.
No lugar de muros - chapas metálicas.
Em lugar de uma vela - uma fuga.
A viagem em vez da recordação.
Um poema veloz em vez de um hino.
Uma pequena estrela cansada correu
à minha frente
e o asfalto da auto-estrada brilhou,
revelando onde estava a terra,
onde aguardava na expectativa a lâmina do horizonte,
e a aranha negra do anoitecer
e da noite, viúva de tantos sonhos.




(versões minhas, a partir das traduções inglesas do polaco de Renata Gorczynski e Clare Cavanagh, respectivamente, ambas reproduzidas por Edward Hirsch, in Poet's Choice, Harcourt, Orlando, 2006, pp. 104-106.)

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Adam Zagajewski

Mais poemas de Adam Zagajewski, traduzidos por Jorge Sousa Braga aqui.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Adam Zagajewski

Uma chama


Senhor, dá-nos um longo inverno
e música suave, e bocas pacientes,
e um pouco de orgulho - antes
que o nosso tempo chegue ao fim.
Dá-nos o espanto
e uma chama, alta, clara.



(versão minha a partir da tradução do polaco para inglês de Clare Cavanagh, reproduzida por Edward Hirsch in Poet's Choice, Harcourt, Orlando, 2006, p. 102)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Reetika Vazirani (1962 - 2003)

Canção de embalar


Não vou cantar para que adormeças.
Vou pressionar os meus lábios contra o teu ouvido
e esperar que o terror do meu coração te desperte.



(versão minha; original reproduzido em Edward Hirsch, Poet's choice, Harcourt, Orlando, 2006, p. 214)

Radmila Lazic (1949 -...)

Prazeres



Alguns versos.

Algumas linhas sobre poesia.

Alguns tragos pela garganta

De algo espesso e amargo.

A descida do anoitecer com os seus ossos cansados.

Memória. Silêncio.

O quase inaudível tique-taque.

Se houver apenas um aguaceiro de Verão.

A minha cabeça junto ao umbigo de alguém. Sim!



(versão minha da tradução do sérvio para o inglês de Charles Simic, in Edward Hirsch, Poet's Choice, Harcourt, Orlando, 2006, pp. 113-114)