sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Craig Santos Perez

O amor em tempos de alterações climáticas

Reciclando o "Soneto XVII" de Pablo Neruda 



Não te amo como se fosses um desses raros metais terrestres,
ou um diamante de sangue, ou uma reserva de crude 
que origina guerras. Amo-te como se ama as espécies mais
vulneráveis: com urgência, entre o espaço vital e a sua destruição.

Amo-te como se ama a última semente guardada
num cofre, a que gera a herança das nossas raízes
e, graças ao teu corpo, o sabor que amadurece
nos seus frutos continua vivo e doce na minha língua.

Amo-te sem saber como ou quando vai acabar 
este mundo. Amo-te organicamente, sem pesticidas.
Amo-te assim porque só poderemos sobreviver

no composto rico em nitrogénio do nosso enlace,
tão unidos que as tuas emissões de carbono são minhas,
tão juntos que o nível do teu mar subirá por causa do meu calor.



(Versão minha; original aqui).

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Juan Bonilla

 Fogueira



Fomos duas pedras
que um deus inimputável
batia uma e outra vez
à procura de uma chispa de fogo
que começasse uma fogueira
trouxesse calor
contra o frio do tempo,
o frio de estarmos sós,
o frio de não sermos mais que marionetas
de um deus inimputável.

Duas pedras
envoltas em pele
golpeando-se uma e outra vez
para ver se caía a gota
de fogo capaz de dar início
a uma fogueira
que incendiasse o mundo.



(Versão minha; poema incluído em Horizonte de sucesos; Renacimiento, Sevilha, 2021, p. 47).

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Robert Bly

 Ao escutar um grilo por trás de um lambrim de madeira



O som que ele produz é como um barco de velas negras.
Ou como uma viúva debaixo de uma sequóia, a avisar
quem passa que a árvore está prestes a cair.
Ou como um sino de estanho preto numa aldeia mexicana.
Ou os pêlos na orelha de um homem com cem anos.



(Versão minha; original reproduzido em The invisible ladder; organização de Liz Rosenberg; Henry Holt and Company, Nova Iorque, 1996, p.25)

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Jorge Boccanera

 Colher



Nasce do verbo dar,
como se o coração tivesse uma pega.
É feita daquilo que lhe falta. Nunca guarda nada para si.
Poderia medir o mundo, embalá-lo, transportar
o seu mistério, os seus campanários de água de uma margem à outra.
Mais humana que um cão.
Mais à mão que Deus.



(Versão minha; Poesía argentina - Antología esencial; selecção de Marta Ferrari; Visor, Madrid, 2010, p. 458).