segunda-feira, 18 de julho de 2022

Victor Neborak

 Café



A inspiração é um criado que satisfaz os vossos pedidos,
que encanta o café como se encanta uma serpente,
e a minha pobre cabeça, cortada por desobedecer
por um sabre turco, ferve nessa 

substância líquida. Reconheço-o:
estava numa fila de velhos peralvilhos,
magros caramelos e facas graúdas...
E eu sem estar ainda registado no paraíso!

Espírito de chocolate, temperatura
dos lábios avermelhados e das abelhas frenéticas.
O aspecto da desconhecida, semelhante ao de um lémure -

até o açúcar se divide em partes iguais.
Enquanto a minha mente diverge pelas regiões de Singapura
o meu rosto esmaga-se contra a mesa.



(Versão minha. Fonte: Una iconografía dela alma. Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral / Edições UNESCO, Málaga, 1993, p. 219).

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Juan Bonilla

 Jornal



E não se cansam de cantar a beleza do mundo os poetas:
crepúsculos e praias, bailarinas, resplendores, tralará...

O sudanês de vinte e cinco anos recebeu
uma carta registada do governo negando-lhe o visto
e instando-o a abandonar o solo norueguês
no prazo máximo de vinte e quatro horas.

E que belo vermo-nos juntos no duche ao espelho,
e que adorável a nossa baby que já cita Kierkeggards
e trauteia Lascia chi'o pianga...

Apanhou um autocarro num sítio qualquer, o primeiro que apareceu
e sentou-se na última fila e ninguém se sentou ao seu lado.

Como poderemos cansar-nos do milagre da laranjeira no nosso quintal,
dos sermões burocráticos dos melros,
ser criança e poder chamar impunemente Deus a tantas coisas.

Na sua mochila levava apenas a sua faca,
derrubaram-no facilmente depois de ter cortado
a jugular a uma rapariga nórdica

de vinte e cinco anos
que andava a ler um livro de poemas
que celebravam a existência das raparigas,
os autocarros ao amanhecer,
o conformismo burocrático dos pássaros,
as humidades verdes da paisagem,
a insólita estranheza de existir.



(Versão minha. Fonte: Horizonte de sucesos; Renacimiento, Sevilha, 2021, pp. 66-67).

terça-feira, 5 de julho de 2022

Nissim Ezekiel

 Uma palavra para o vento



Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento.
Uma outra palavra, uma frase que estivesse cheia dele
Como uma vela, versos
Que se deslocassem com a ligeireza do vento
Sobre a erva ou por entre as árvores,
Que sussurrassem descendo pela folhagem da significação,
Um som que evocasse o sentido, esse, súbito,
Pesado e baço, do fruto
E dos longos silêncios
À superfície do vento, e debaixo dele.
Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento;
Cego como Homero, meditando sobre o mar cor de vinho,
Penso sobre o vento, escavando
As nascentes de numerosos cantos que existem em mim e não viram o dia,
Revelando num lampejo a chama constante,
Um incêndio no coração do vento.
Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento.



(Versão minha. Fonte: Un feu ao coeur du vent. Trésor de la poésie indienne - Des Vedas au XXIe siècle; organização de Zéno Bianu, Gallimard, 2020, p. 170).