segunda-feira, 11 de julho de 2022

Juan Bonilla

 Jornal



E não se cansam de cantar a beleza do mundo os poetas:
crepúsculos e praias, bailarinas, resplendores, tralará...

O sudanês de vinte e cinco anos recebeu
uma carta registada do governo negando-lhe o visto
e instando-o a abandonar o solo norueguês
no prazo máximo de vinte e quatro horas.

E que belo vermo-nos juntos no duche ao espelho,
e que adorável a nossa baby que já cita Kierkeggards
e trauteia Lascia chi'o pianga...

Apanhou um autocarro num sítio qualquer, o primeiro que apareceu
e sentou-se na última fila e ninguém se sentou ao seu lado.

Como poderemos cansar-nos do milagre da laranjeira no nosso quintal,
dos sermões burocráticos dos melros,
ser criança e poder chamar impunemente Deus a tantas coisas.

Na sua mochila levava apenas a sua faca,
derrubaram-no facilmente depois de ter cortado
a jugular a uma rapariga nórdica

de vinte e cinco anos
que andava a ler um livro de poemas
que celebravam a existência das raparigas,
os autocarros ao amanhecer,
o conformismo burocrático dos pássaros,
as humidades verdes da paisagem,
a insólita estranheza de existir.



(Versão minha. Fonte: Horizonte de sucesos; Renacimiento, Sevilha, 2021, pp. 66-67).

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