domingo, 4 de dezembro de 2022

Mario Montalbetti

Desculpe, a tabacaria é aqui?



Ninguém diz tudo. Ninguém diz nada.
O desejável é dizer pouquíssimo.
Calar não é mais radical.
Calar é como rapar a cabeça:
o cabelo volta a crescer.
Porém dizer pouquíssimo, dizer o mínimo
que podemos dizer,
isso é o que nos permite dizer alguma coisa.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui).

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

sábado, 8 de outubro de 2022

Patrizia Cavalli

 [Seis poemas]


Finjo esperar-te para expandir os minutos.
E fazes bem em não vir.


***


Não depende de mim,
reconheço que não depende de mim.
Dependesse de mim
e estaria numa total e maravilhosa dependência.


***


Tal como muitas das minhas meias
o meu coração já não tem qualquer elástico,
cede e deixa-me a descoberto, e eu tenho frio.


***


Quando rima, o amor
acrescenta algo a seu favor.

Amor que rima exibe,
seu mal melhor inibe.


***


Os marroquinos com os seus tapetes
parecem santos e na realidade
são comerciantes.


***


Pomba aleijada. Ridícula
pomba aleijada e disforme.
Se algum defeito têm os animais
logo se parecem com os humanos.



(Versões minhas).

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Pablo Fidalgo Lareo

Paciências



Aluguei um quarto no bairro de Santos
para passar o inverno mais frio da minha vida.
A dona da casa não fazia senão paciências.
Santos era a terra da infância.
Meninos do rio. A casa está no mar.
O comboio é uma máquina de um  mundo superior
que arrasa tudo o que fui.

Amo as pedras da rua, o modo como se resvala com a chuva,
como a cidade foi feita sem se pensar em ninguém.
No 25 de abril alguém deu ordem de disparar a um soldado
mas ele não a cumpriu e evitou uma guerra.
Amo a águia do Benfica
ao dar a volta ao estádio antes de cada jogo.

Como dizê-lo? Nada me prende a esta margem.
Se vir aqui um pouco de ódio que seja
irei para o outro lado e começarei de novo.
Se alguma vez fizer um amigo
dir-lhe-ei como é a minha terra natal
para o assustar e manter à distância.
Com o tempo aprendi que um pouco de ódio
é o início de todo o ódio.

Isto é Lisboa. Perguntam-me por que vim para cá
e isso é ir demasiado longe.
Se queres saber por que vim
deixa-me ver-te com os que nada têm.
Entra no jogo de perder tudo como eu entrei.
Isto é Lisboa: a cidade onde hei-de escrever
o livro alucinado que sempre quis escrever.

Sei que esta é a única margem
por isso ponho-me a olhar o rio sem pensar
que a minha presença aqui é uma vingança.
Penso que o que amo é a vida dupla
que todos tiveram em África e Portugal.
Também para mim se acabou.

Lembras-te do tempo do primeiro escândalo
quando parecia impossível que houvesse outro e depois outro?

Alguém disse vergonha só de fazer coisas más.
Isto não faz parte da minha vida, eu vim para ficar.
E tu, vês as palavras a saírem do rio, a baterem 
contra as águas do mar?

Habito num lugar da margem
onde podes beber quanto quiseres
sem que ninguém diga nada.
E tu, o que sentes quando me vês navegar
neste rio inavegável?


(Versão minha; original algures aqui)

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Jaime Gil de Biedma

 Pelos vistos



          Declarar-se homem pelos vistos é possível.
Pelos vistos é possível dizer não.
De uma vez e na rua, de uma vez, por todos
e por todas as vezes em que não pudemos.

          Importa pelos vistos o facto de estar vivo.
Importa pelos vistos que até a injusta força
precise, implicando as nossas vidas, desses actos mínimos
cumpridos diariamente na rua por todos.

          E será necessário não esquecer a lição:
saber, a cada instante, que no gesto que fazemos
há uma arma escondida, saber que ainda estamos 
vivos. E que a vida
pelos vistos ainda é possível.



(Versão minha; original algures na rede)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Blas de Otero

 Notícias de todo o mundo



Aos quarenta e sete anos da minha idade
dá medo dizê-lo, sou só um poeta espanhol
(dão medo os anos, isto de poeta, e Espanha)
de meados do século XX. E é tudo.
Dinheiro? Carinho é o que desejo,
diz a copla. Aplausos? Sim, mas não o ensejo.
Saúde? A suficiente. Reputação?
Má. Mas cabelo sem moderação.
Dá medo pensá-lo, no entanto apenas me lêem
os analfabetos, não os trabalhadores, ou
as crianças.
Mas já me leram. Agora ando a aprender
a escrever, mudei de classe,
precisava de uma máquina de fazer versos,
perdão, de uns versos para a máquina
e, sobretudo, paz,
preciso de paz para continuar a lutar
contra o medo,
para brindar no meio da praça
e abrir o porvir de par em par,
para plantar uma árvore
no meio do mundo,
para dizer "bom dia" sem enganar ninguém,
"bom dia, carteiro", e que me entregue uma carta
em branco, de onde voe uma pomba.



(Versão minha. Original algures na rede).

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Victor Neborak

 Café



A inspiração é um criado que satisfaz os vossos pedidos,
que encanta o café como se encanta uma serpente,
e a minha pobre cabeça, cortada por desobedecer
por um sabre turco, ferve nessa 

substância líquida. Reconheço-o:
estava numa fila de velhos peralvilhos,
magros caramelos e facas graúdas...
E eu sem estar ainda registado no paraíso!

Espírito de chocolate, temperatura
dos lábios avermelhados e das abelhas frenéticas.
O aspecto da desconhecida, semelhante ao de um lémure -

até o açúcar se divide em partes iguais.
Enquanto a minha mente diverge pelas regiões de Singapura
o meu rosto esmaga-se contra a mesa.



(Versão minha. Fonte: Una iconografía dela alma. Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral / Edições UNESCO, Málaga, 1993, p. 219).

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Juan Bonilla

 Jornal



E não se cansam de cantar a beleza do mundo os poetas:
crepúsculos e praias, bailarinas, resplendores, tralará...

O sudanês de vinte e cinco anos recebeu
uma carta registada do governo negando-lhe o visto
e instando-o a abandonar o solo norueguês
no prazo máximo de vinte e quatro horas.

E que belo vermo-nos juntos no duche ao espelho,
e que adorável a nossa baby que já cita Kierkeggards
e trauteia Lascia chi'o pianga...

Apanhou um autocarro num sítio qualquer, o primeiro que apareceu
e sentou-se na última fila e ninguém se sentou ao seu lado.

Como poderemos cansar-nos do milagre da laranjeira no nosso quintal,
dos sermões burocráticos dos melros,
ser criança e poder chamar impunemente Deus a tantas coisas.

Na sua mochila levava apenas a sua faca,
derrubaram-no facilmente depois de ter cortado
a jugular a uma rapariga nórdica

de vinte e cinco anos
que andava a ler um livro de poemas
que celebravam a existência das raparigas,
os autocarros ao amanhecer,
o conformismo burocrático dos pássaros,
as humidades verdes da paisagem,
a insólita estranheza de existir.



(Versão minha. Fonte: Horizonte de sucesos; Renacimiento, Sevilha, 2021, pp. 66-67).

terça-feira, 5 de julho de 2022

Nissim Ezekiel

 Uma palavra para o vento



Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento.
Uma outra palavra, uma frase que estivesse cheia dele
Como uma vela, versos
Que se deslocassem com a ligeireza do vento
Sobre a erva ou por entre as árvores,
Que sussurrassem descendo pela folhagem da significação,
Um som que evocasse o sentido, esse, súbito,
Pesado e baço, do fruto
E dos longos silêncios
À superfície do vento, e debaixo dele.
Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento;
Cego como Homero, meditando sobre o mar cor de vinho,
Penso sobre o vento, escavando
As nascentes de numerosos cantos que existem em mim e não viram o dia,
Revelando num lampejo a chama constante,
Um incêndio no coração do vento.
Não cheguei a encontrar uma palavra para o vento.



(Versão minha. Fonte: Un feu ao coeur du vent. Trésor de la poésie indienne - Des Vedas au XXIe siècle; organização de Zéno Bianu, Gallimard, 2020, p. 170).

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Justyna Bargielska

Tradução



Da rua, através da janela, vejo a minha mãe de pé junto ao lava-loiças da cozinha
da casa em chamas, ela mesma em chamas desde há um bom bocado,
não resta muito dela, na verdade só o seu perfil. Passarão trinta anos
e a minha filha verá pela janela
da rua como ardo na casa em chamas. Nem sequer sei
se já saberá então o que está a ver.

Arranjei espaço para a morte na minha vida,
pus de lado o cobertor, a camisa de dormir, a caixa das costelas.
Não teria espaço para nenhum de vós se não tivesse arranjado
espaço para a morte. Enquanto não arranjei espaço para a morte,
para nenhum de vós tinha espaço, não tenham ilusões.
Abro uma noz e encontro as cinzas de um rato,
do meu marido e dos meus filhos, o meu prémio, a minha confirmação.



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, madrid, 2021, p. 139).

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Izet Sarajlic

 Comer uvas no autocarro para Skojé com a poetisa espanhola Clara Janés



Comer uvas no autocarro para Skojé com a poetisa espanhola Clara Janés,
passear à meia-noite pela rua Knez Mihailova com Stevan Raicovic,
tomar o primeiro café da manhã em Novi Sad com Mladen Leskovac,
abrir a caixa do correio e encontrar uma carta de Bulat Okudzhava,
cantar depois de uma leitura de poesia em Trebinje com Manolis Anagnostakis,
todas estas e mais mil coisas
só podem ser disfrutadas nesta vida.
Aqueles que afirmam que a vida é o pior que nos podia acontecer
não entenderão nunca a alegria que lateja neste poema.
Não escrevo para eles.



(Versão minha. Fonte: Una calle para mi nombre; selecção e prólogo de Juan Vicente Piqueras, Ayuntamiento de Lucerna, 2ª edição, 2003, p. 53).

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Blanca Sarasua

Envia-me uma carta



Envia-me uma carta, ainda que se perca.
Envia-me velas acesas, não sei,
um monte, por exemplo, que me olhe de cima.
Envia-me sonetos, pergaminhos,
capitéis coríntios que reforcem
esta luz da tarde que resvala.
Alguma coisa de Brahms, o mar e o seu epicentro.
Bandeiras sem manchas de cores,
que se possam pintar como se quiser.
E sobretudo ar, sem condutas, ar livre.
Por agora, a carta, ainda que se perca.



(Versão minha. Fonte: La casa del presente - 14 poetas vascos; selecção de Iñigo Linaje e Ángel Guinda, Olifante, 2021, p. 43).

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Wioletta Grzegorzewska

As línguas das partículas



O professor de química, bom conhecedor de todas as bases
e todos os ácidos, de pé frente à tabela periódica,
passava horas a meter-nos na cabeça os símbolos dos elementos.
No laboratório dava-nos lições com a linguagem das partículas,
brincava à apanhada com os átomos usando o oscilador,
com as provetas, como um alquimista, torturava o mercúrio,
calculava a chuva em número de gotas.
No seu mundo as árvores tinham anéis regulares,
e a vida era directamente proporcional à morte.



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, Madrid, 2021, p. 117).

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Marzanna Bogumila Kielar

[Luminosos amanheceres da morte,]



Luminosos amanheceres da morte,
houve uma época em que se morria em casa.
Havia tempo para nos familiarizarmos com a morte,
para praticarmos um pouco com ela, começava-se cedo
com alguma coisa de pouca amplitude, uma dor nas costas
ou a rotura de um tendão.
O corpo vai-se desatando da vida.
Lança um olhar, como se se detivesse na fronteira entre dois Estados
e perguntasse: "A qual deles pertence esta terra?"
Ainda tem algum tempo antes de uma onda poderosa e morta 
se acumular às claras sobre os ombros.
Antes que cheguem os amanheceres sem brilho
no silêncio de um mundo vazio no qual não há ilhas
nem bonecos de areia e a solidão
é já absoluta



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, Madrid, 2021, p.39).

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Igor Zidic

 Poesia



Mesmo sem pássaros
o ar haveria
de cantar



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p.299).

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Antun Branko Simic

 Eu e a morte



A morte não existe fora de mim. Ela está em mim
desde o primeiro momento: cresce comigo
a cada minuto
                  Um dia
se eu parar
                  ela continuará a crescer
em mim até me ocupar completamente
até me preencher. O meu fim
é o seu verdadeiro começo:
                  ela expande o seu reino, sozinha.



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p.168).

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Miroslav Krleza (1893 - 1981)

O diálogo de Jerusalém



- É isso? Ele é de Nazaré?
- Pois claro: a feirante ali da esquina
é a sua tia!
- E ouvi dizer que é filho ilegítimo
e que o pai anda a varrer ruas.
- Nasceu num estábulo, isso é certo.
Verdade seja dita, a origem do miúdo é problemática e pouco clara.
A mãe, diz-se, anda por aí com um velhote.
Quem poderia imaginar, minha senhora, todos estes escândalos?
- Mas adiante. E andou à escola?
Fez o liceu?
- Nem pensar!
Com certeza a senhora só pode estar a brincar!
Qual bacharelato de Deus?
Um dia destes, na rua,
deu um beijo a uma galdéria!
Anda a beber com os vadios; só os indigentes,
os cegos e os pecadores é que o seguem,
e agora começou a levar as nossas crianças por maus caminhos.
As reclamações contra ele já começaram
a chegar à polícia.
Oiça o que lhe digo, minha senhora,
esse rapaz há de acabar numa cruz!



(Versão minha. Fonte: La poésia croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutores deste poema: Mira Kuzmic e Pierre Seghers]; Seghers, s/d, p. 157).

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Petar Preradovic (1818 - 1872)

 Ao coração humano



Ao coração humano falta sempre alguma coisa;
Nunca se dá completamente por satisfeito:
Não é senhor de ter nas mãos o objecto do seu sonho
Sem que cem desejos o assaltem uma vez mais.

Desprezando o pão de cada dia, que o destino lhe dá,
Por que aconchega, no seu seio, sob a forma
Dum desejo ardente, um falcão cruel que
Não cessa de nele enterrar o bico esfomeado?

Entre o berço e o túmulo decorre um tempo
Excessivamente curto, designado vida;
Face à morte, também o coração sempre

Estremece com o mesmo desejo de sempre,
Sempre sonhando: é que a terra tem prazeres
Que o coração não saberá levar para o caixão.



(Versão minha. Fonte: La poésie croate- des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p. 103).

domingo, 15 de maio de 2022

Poesia popular croata (2)

 Estranho remédio



O cervo corre na montanha,
nos seus bosques, nos píncaros,
nos píncaros as cidades,
nas cidades um palácio, e
o meu bem amado está à mesa:
"Sentes-te doente, meu bem amado?
Então dar-te-ei um ensopado,
um ensopado de moscas,
uma costeleta de mosquito,
uma coxa de poldra,
aguardente numa peneira,
meu bem amado, para te curar!"



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihailic e Ivan Kusan; vários tradutores [tradutora deste poema: Janine Matillon]; Seghers, s/d, p.84).

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Poesia popular croata (1)

Enganaram-no



Cidade de Senj, que as chamas te devorem!
Dentro dos teus muros servi três anos:
um ano pelas armas brilhantes,
um ano por um bom cavalo,
um ano por uma bonita rapariga.
Quando voltei para resgatar as armas brilhantes,
deram-me as velhas e ferrugentas.
Quando voltei para resgatar o bom cavalo,
deram-me uma velha pileca.
Quando voltei para resgatar a bonita rapariga,
deram-me uma velha galdéria.



(Versão minha. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihailic e Ivan Kusan; vários tradutores [a tradução francesa deste poema é de Janine Matillon]; Seghers, s/d, pp. 85-86).

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Dinko Zlataric (1555 - 1613)

Na morte do meu filho primeiro nascido Simão e falecido
no dia três de setembro de 1592, tendo vivido um ano, 
dois meses e quinze dias!



Meu bem amado filho, por que foi então necessário
que eu te fechasse os olhos, tal como fiz, quando 
julguei que serias tu a fazê-lo a mim, defunto?
Agora que estás morto, e eu aqui permaneço,
o sol percorreu a sua órbita somente uma vez,
e a lua apenas três vezes desde a tua vinda.
Tu que foste tão breve, que nos deixaste, 
meu filho, ó toda a minha glória, todo o meu amor!
Mais rápido do que a flecha passaste
e furtaste aos nossos olhos o teu doce encanto.
Teu pai a teu rogo não mais te embalará,
não mais, no seu pescoço, sentirá os teus meigos braços.
Tu, que foste do meu coração a primeira alegria,
tu, que agora és o seu choro, a sua queixa, o seu luto.
Num tempo tão curto como mudou o meu destino, 
como de doces fez amargas todas as minhas esperanças!
A noite não virá sobre nenhum dos meus dias
sem que não me encontre em lágrimas, e não me deixará.
Porque contigo todas as minhas alegrias pereceram -
foi a luz dos meus olhos que me abandonou.



(Versão minha.  Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan; vários tradutores [Janine Matillon]; Seghers, s/d, p. 72).

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Ditos e provérbios populares croatas

 

Os tolos batem-se, os sábios bebem vinho.

*

O diabo não é tão negro como o pintam.

*

Cada um receia o seu próprio cadáver.

*

Deus nas alturas, e a justiça ao longe.

*

Primeiro de agosto, primeiro figo na boca.

*

Não vale a pena mentir ao estômago.

*

Enquanto os sábios procuram a ponte, os tolos atravessam o rio.

*

Os grandes gatunos são libertados, os pequenos enforcados.

*

É preciso medir as palavras, mais do que contá-las.

*

É bom ter amigos, mesmo no inferno.


(Versões minhas. Fonte: La poésie croate - des origines à nos jours; selecção de Slavko Mihalic e Ivan Kusan: vários tradutores; Seghers, s/d, pp. 305-307).

sábado, 30 de abril de 2022

Mario Vega

 Diante do túmulo do corpo amado



A vida não é como nos contaram,
porque viver é estar sempre em guerra
e morrer dói menos.
E aquele que apostou no amor, desconhecendo
como passam os dias
paga cara a sua farsa.
Do seu desprezo ficam ruas tristes
e uma cidade distante como um domingo inglês.
Não se pode servir dois tiranos
que oferecem como dom e maldição
sombras da memória.

Se uma parte desta dor pode atingir-te
escuta-me e prossegue com a tua aventura,
seja cinza ao vento ou brasa soterrada.
Eu permaneço aqui
imóvel, silencioso, imerecido.

Tu cada vez mais distante da morte,
eu cada vez mais longe da vida.



(Versão minha. Fonte: Los últimos del XX - Antología de poesía (1980-1997); selecção de Miguel Munárriz; Luna de Abajo, Oviedo, 2020).

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Linda Gregg

 O verão numa cidade do interior



Quando me abandonam,
os homens deixam-me num qualquer lugar maravilhoso.
É sempre no fim do verão.
Ao pensar neles,
lembro-me dos lugares.
E do facto de me sentir só e feliz depois.
Desta vez foi em Clinton, Nova Iorque.
Dou as minhas braçadas na piscina pública
às seis da tarde, quando toda a gente
já foi para casa.
O céu está cinzento, o ar quente.
Percorro o caminho de regresso através da relva cortada,
deliciando-me com o seu cheiro e com as casas
de um modo tão intenso que fico de coração vazio.



(Versão minha. Fonte: aqui).

terça-feira, 19 de abril de 2022

John Smelcer

 O urso polar

(Ilha de Flaxman, Oceano Ártico, 1982)



Uma vez, quando eu era jovem,
aconteceu-me uma coisa extraordinária.

Remava junto à margem no meu caiaque
quando vi um urso polar sentado no gelo

à procura de alimento. Era um urso enorme.
Saltou para dentro de água e começou a perseguir-me.

Talvez tenha pensado que eu era uma foca gigante.
Nadou três vezes à volta do meu caiaque.

Bati-lhe com o remo e gritei-lhe,
"Vai-te embora! Deixa-me em paz!"

Por fim ele decidiu voltar para terra.
Devo ter sido abençoado por algum corvo.

E nisto consiste a minha história. Seja como for,
agora quero falar de uma coisa completamente diferente.



(Versão minha. Fonte: Modern Poetry in Translation (War of the Beasts and the Animals - Russian and Ukrainian Poetry; 2017, nº 3, p. 59).

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Li Bai (701 - 763)

 Gracejando com Du Fu



No topo da montanha Fan Ko
está Du Fu sob o sol do meio-dia
com o seu enorme chapéu de camponês.

Emagreceste tanto 
desde a última vez que nos vimos!... Porquê?
Não me digas que estás de novo doente de poesia!



(Versão minha. Fonte: Li Bai, Recostado sobre las nubes; tradução, prólogo e epílogo de Martín López-Vega; Impronta, Gijón, 2020, p. 54).

sábado, 9 de abril de 2022

Vasyl Holoborodko

 Bisonte de um só corno


                                    "A ceifar os verdes campos dos cereais
                                      A minha mãe me mandava."
                                                   Canção popular


Da escura caverna 
que era a vida
saía o bisonte de um só corno 
que foi o arado
e lançava-se sobre a mulher 
que era fértil
até a deixar extenuada - 
como a terra cultivada...

Ferida pelo corno do bisonte 
que era o arado
a mulher achava-se estendida 
no campo -
e contemplava as flores - 
as rubras papoilas.

Penetrou o bisonte de um só corno 
que foi o arado
na escura caverna 
que era a vida.



(Versão minha. Fonte: Una iconografía del alma - Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral/Edições UNESCO, Málaga, 1993, p. 181).

terça-feira, 5 de abril de 2022

Juan Antonio González Iglesias

 Escuto a água limpa


                              Para Victor Herrero de Miguel


Escuto a água limpa
que desce da montanha depois da chuva,
o gorjeio do pássaro
na tarde
primaveril de outubro,
a resposta de 
cada coisa a cada coisa. Caem
folhas sobre a terra como frutos.

Não acredito
que a névoa de ontem,
o sol de hoje,
esta chuva de agora,
este aroma sem preço
sejam só para mim.



(Versão minha. Fonte: Confiado; Visor, Madrid, 2015, p. 49)

quarta-feira, 30 de março de 2022

Miguel d' Ors

Talvez nisto consista a poesia


Umas poucas palavras que possam mais que o tempo.
Talvez nisto consista a Poesia.
Umas quantas palavras que arranquem da morte,
como Jesus fez com Lázaro, as horas já vividas.
Que tragam, por exemplo, a este agora os avós
com o Leão e as vacas - a Roxa, a Morena e a Linda;
que eu volte a subir, com a espingarda ao ombro,
pelo Monte da Arcela acima
e que aqueles verões que duravam dois meses
durem toda uma vida.

                                                         15-XI-2020


(Versão minha. Fonte: Viaje de invierno; Renacimiento, Sevilha, 2021, p. 15).

sexta-feira, 25 de março de 2022

Timur Kibirov

 DOIS POEMAS


Uma velha canção sobre a coisa mais importante



Ela encheu-nos de bebida, a nossa terra natal,
e de comida mais ou menos suficiente.
E, se é verdade que nos chegou a roupa ao pelo, por outro lado
não nos bateu com toda a sua força.

Mas nós não a amávamos, tal como
ela não nos amava a nós.


***


Historiosófico



"Não podes compreender a Rússia com a tua mentalidade."
Não podes compreender a Polónia, ou a Albânia,
a Nigéria, Cuba, ou a Tasmânia,
as Caraíbas ou a Grã-Bretanha,
a Guiné Equatorial, a Áustria-Hungria,
Roma ou a Terra do Meio ou Nárnia -
elas são únicas, e são como são.

"Tudo o que podes fazer é acreditar na Rússia."
Não, tudo o que podes fazer é acreditar no Senhor.
Tudo o resto é uma fraude sem remédio.
No entanto, como decidiste tirar-lhe as medidas,
foi-nos concedida a nossa recompensa:

podes viver mais ou menos na Rússia,
desde que sirvas a Pátria e o Czar.



(Versão minha, a partir da tradução inglesa de James Womack. Fonte: Modern Poetry in Translation (War of the Beasts and the Animals - Russian and Ukrainian Poetry; 2017, nº 3, p. 170).

sábado, 19 de março de 2022

Vasyl Holoborodko

 [Os homens começaram a reunir-se]



Os homens começaram a reunir-se
todos rapados com pente zero
(deste corte também se diz que é "à maluco")
e eu não sabia
se eram todos futuros soldados
(e onde estavam os seus estandartes e tambores?)
ou simplesmente prisioneiros
(mas então por que não traziam os seus trajes festivos às riscas?)
ou se as suas mulheres lhes haviam arrancado as madeixas.
A mim disseram-me:
olha a essência;
então compreendi, que nos próprios olhos observo,
como o princípio da igualdade se materializa na vida.
Quem se lembra da clandestinidade dos guedelhudos?:
prendam-nos e tosquiem-nos.
Quem é que alguma vez escreveu um verso sobre o ramo hirsuto 
                                                                                     da macieira?
Há que podar: a) o autor
                       b) o verso
                       c) o ramo hirsuto.



(Versão minha. Fonte: Una iconografía del alma -Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral / Edições UNESCO, Málaga, 1993, p. 179.)

sábado, 12 de março de 2022

Marta Eloy Cichocka

Trinta e quatro



senti o fogo
nas minhas costas
fugi descalça
não tive tempo de
agarrar em nada
de vestir nada

de meter nada
no bolso o passaporte
o telefone um amuleto
uma pedra verde
o meu batom preferido
tudo isso

ficou para trás

e à frente

o silêncio



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán; Vaso Roto, Madrid, 2021, p. 95).
 

terça-feira, 8 de março de 2022

Timur Kibirov

 Nota bene



Fui à América. Subi ao topo dos arranha-céus.
Conversei com Brodsky, e ele disse-me para 
não autografar os meus livros na diagonal, pois 
isso é vulgar e pretensioso. Este importante conselho
foi-lhe dado pela Anna Andreyevna Akhmátova,
e agora é a minha vez, rapazes, de o passar a vós.
Que vergonha, se as coisas continuarem assim, que 
não haja aqui ninguém a quem possais dizer alguma coisa.



(Versão minha, a partir da tradução inglesa de James Womack. Fonte: Modern Poetry in Translation (War of the Beasts and the Animals - Russian and Ukrainian Poetry; 2017, nº 3, p. 171).

sábado, 5 de março de 2022

Lina Kostenko (1930 - ...)

 Matemática superior



Soma e resto da vida.
Tábua de multiplicar.
A raiz quadrada das visões do romântico.
Escrevemos dois, observamos três.
Disseminada
e vulgar
matemática
quotidiana.
A alma deseja elevar-se a um plano superior.
A alma conta o total da superfície:
o passado - o presente - os vivos e aniquilados,
a verdade - a poesia - a chuva atómica.
O dragão - as musas - o telefone - os mirtilos,
a fé - o vírus - os milhões - os nulos...
A vida opera infinitamente com os pequenos.
Todos somos únicos - também diminutos.

Mas de todos os gestos
e apertos de mão,
da mentira, conjunto liquidado,
a história - o mais completo dos ensinamentos -
calcula o ETÉREO INTEGRAL.

Das migalhas estelares mais minúsculas!

A eterna matemática superior:

        da soma dos infinitamente pequenos
        resulta o infinitamente grande.



(Versão minha. Fonte: Una iconogafía del alma. Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral/Ediciones UNESCO, Málaga, 1993, p. 89).



terça-feira, 1 de março de 2022

Mykhaylo Semenko (1892- 1939)

 Peça poética sobre si mesmo



Porque sou feliz quando encontro uma palavra
Apaixonado pela pausa adoro os intervalos de uma língua desconhecida
Sou um poeta lírico entusiasta dos extensos parênteses entre um verso e outro
Sou um sonhador visionário ainda muito mais exagerado
Sou um poeta da desolação e do júbilo depois da angústia
Sou um poeta da dor e do encanto depois do tormento mortal
Sou brando como os olhos suaves, como as sobrancelhas sedosas da amante
Sou um poeta visionário das substâncias temperadoras e do aço
Sou um lírico e um trampolim poeta das árias sonoras pausa dos cantores afinados 
                                                                                                 [e do amor apaixonado.



(Versão minha. Fonte: Una iconografia del alma. Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral / Edições UNESCO; Málaga, 1993, p. 33).

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Hrehory Chubay (1948 - 1982)

 [No século vinte viver não é...]



No século vinte viver não é tarefa fácil,
Pois cada instante é angustiante,
E o átomo pode ser dividido,

Pelo contrário a alma não se cindirá
Em duas partes ou em múltiplas
Partículas de substância vilipendiada.
Num mundo armado os versos
Permanecem alinhados ao lado dos mísseis.
Quando falam de guerras por terminar
Pronunciam palavras de mortal sacrilégio.
... No século vinte há que viver
Por aqueles que não puderam fazê-lo.
E sofrer uma dor multiplicada por vinte
Passando pelo tormento até à vigésima vez.
Pelos vinte há que arar a terra.
Pelos vinte há que carregar a tristeza.
Pelos vinte há que voar até ao céu
E trazer o conserto ao mundo:
Para que cada um viva um pouco mais por si mesmo
No futuro século vinte e um.


[1990]



(Versão minha. Fonte: Una iconografia del alma. Poesía ucraniana del siglo XX; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech; Litoral/Edições UNESCO; Málaga, 1993, p. 186).

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Marta Eloy Cichocka

[Dá a ideia de que...]



Dá a ideia de que na palma da mão tenho toda a cidade, e quando fecho
o punho os campanários cravam-se debaixo das unhas, e quando enfio
as mãos nos bolsos os carros embatem uns nos outros,
dá-se um terrível choque em cadeia, cruzes cheias de vidros
partidos, pequenas ambulâncias desesperadas... Por isso não me 
perguntes por que pinto as unhas com as mãos a sangrar.



(Versão minha. Fonte: Luz que fue sombra. Diecisiete poetas polacas (1963-1981); selecção e tradução de Abel Murcia e Gerardo Beltrán, Vaso Roto, Madrid, 2021, p. 61).

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

É Por Isso Que A Alegria É mais alta

Poemas russos dos séculos vinte e vinte e um




(Mais informações aqui).

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Victor F. R. Redondo

 Tráfego pesado



Um pássaro com um caixão na boca.
Um galeão de ouro tripulado por ratos brancos.
Um peixe que quando nada em águas duplas rasga o casco de todos os barcos.

Uma hora na nossa vida que não chegaremos a recordar.
Uma garrafa de uísque vazia com a língua dum náufrago.
Uma palavra que não poderei pronunciar quando me for.
Um vagabundo dormindo debaixo duma ponte.
Um navio cuja tripulação não conhece o mar.
Um erro que voltarás a cometer.
Uma fantasia homossexual que te obceca.
Um verdugo aterrorizado a barbear-se com uma navalha, frente a um espelho.
Uma carruagem de metro onde ela murmura: "Tudo está perdido".

A solidão de um homem que viaja pelas suas veias e se perde antes de chegar.
A obrigação dos relógios andarem para trás para evitar a degolação.
O espaço interior de um caixão e o espaço que o rodeia.
O íman que não atrai sequer a sua sombra.
Uma igreja de cadeiras eléctricas.

O leque fantástico com o qual poderias atrair planetas até à tua janela.
Tudo o que cabe num espaço similar ao triângulo formado pelo ângulo da inclinação 
                                                                                                             [da Torre de Pisa.
Nunca assassines aqueles que não amas. Negoceia os teus segundos com a eternidade.



(Versão minha. Fonte: Nueva poesía argentina; selecção e introduçãode Leopoldo Castilla; Hiperión, Madrid, 1987, pp. 95-96).

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Rafael Felipe Oteriño

 Linhas da mão



Linhas da mão, linhas da vida,
pontos cardeais extraviados na pele,
suplico-vos que não digam toda a verdade:
mesmo que a vida seja curta em extremo
afirmem que o olhar mente
e que uma leitura mais atenta
poderia revelar
quanto andarão os pés,
quanto suplicarão ainda os lábios.



(Versão minha. Fonte: Nueva poesía argentina; selecção e introdução de Leopoldo Catstilla; Hiperión, Madrid, 1987, pp. 62-63).

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Santiago Kovadloff

 Quer dizer



Sim, as fissuras, já sei;
as fissuras, as poucas
conclusões.

Não, não é tarde;
é uma determinada dor aqui,
sim, aqui,
onde estava
a cabeça.



(Versão minha. Fonte: Nueva poesía argentina; selecção e introdução de Leopoldo Castilla; Hiperión, Madrid, 1987, p. 35).

sábado, 29 de janeiro de 2022

Alberto Szpunberg

 Também quando se come se fala



Neste prato esmaltado cabe toda a sopa que ainda fumega,
o raio de sol fere o jogo do vapor no ar
e tu ficas a olhá-lo, em silêncio.
Colocas a colher na borda do prato,
lentamente, como se temesses que o ruído despertasse alguma recordação.
À tua frente a tua filha sorve a sopa
e com um fio de massa entre os lábios pergunta-te se hoje é amanhã.
Hoje é hoje, dizes-lhe, e amanhã é amanhã, mas sorris
e ensinas-lhe que a colher pode flutuar na sopa como um barco,
um barco pesado e fumegante que sabe ir e voltar, voltar também.


(Versão minha: Fonte: Nueva poesía argentina; selecção e introdução de Leopoldo Castilla, Hiperión, Madrid, 1987, pp. 11-12).

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Jean Franco López

 O impossível



Que Deus seja uma negra faminta
e os papas morram na pobreza;
que as rosas nasçam sem espinhos
e as rãs tenham cabelos loiros;
que os políticos não façam mais promessas
e os comerciantes sejam exactos na pesagem;
que os argentinos se mostrem modestos
e os cubanos não tenham opiniões;
que os polícias ofereçam guloseimas
e os médicos confessem a sua ignorância;
que os jornais do governo critiquem
e a oposição valorize os progressos;
que em Deus se reconheça algum defeito
e se descubra uma virtude do Diabo.



(Versão minha. Fonte: Diez poetas cubanos; organização de Juan Nicolás Padrón; DECO McPherson, Miami, 2019, p. 18).

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Ilya Kaminsky

 Durante a guerra fomos felizes



E quando as casas dos outros foram bombardeadas, nós

protestámos
mas não o suficiente, opusemo-nos mas não

o suficiente. Eu estava
na minha cama, em redor da minha cama a América

estava a desabar: casa invisível a seguir a casa invisível a seguir a casa invisível.

Pus uma cadeira cá fora e olhei o sol.

No sexto mês
do desastroso reinado na casa do dinheiro

na rua do dinheiro na cidade do dinheiro no país do dinheiro
o nosso grande país do dinheiro, nós (perdoem-nos)

fomos felizes durante a guerra.



(Versão minha; original aqui).

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Nicolás Guillén

 Digo que não sou um homem puro



Não vou dizer-te que sou um homem puro.
Entre outras coisas
falta saber se o puro existe.
Ou se, digamos, é necessário.
Ou possível.
Ou se sabe bem.
Por acaso já provaste a água quimicamente pura,
a água do laboratório,
sem um grão de terra ou de esterco,
sem o pequeno excremento de um pássaro,
a água feita apenas de oxigénio e hidrogénio?
Bah! que nojo.

Não te digo pois que sou um homem puro,
não te digo isso, pelo contrário.
Amo (as mulheres, naturalmente,
pois o meu amor pode dizer o seu nome)
e gosto de comer carne de porco com migas,
e grão-de-bico e enchidos, e
ovos, frangos, carneiros, perus,
peixe e marisco,
e bebo rum e cerveja e aguardente e vinho,
e fornico (mesmo de estômago cheio).
Sou impuro, que queres tu que te diga?
Completamente impuro.
No entanto,
penso que há muitas coisas puras no mundo
que não são mais que pura merda.
Por exemplo, a pureza do nonagenário virgem.
A pureza dos noivos que se masturbam
em vez de se deitarem juntos numa pousada.
A pureza dos colégios internos onde
a fauna pederasta
abre as suas flores de sémen transitório.
A pureza dos clérigos.
A pureza dos académicos.
A pureza dos linguistas.
A pureza dos que asseguram
que temos de ser puros, puros, puros.
A pureza dos que nunca tiveram blenorragia.
A pureza da mulher que nunca lambeu uma glande.
A pureza daquele que nunca sugou um clítoris.
A pureza da que nunca pariu.
A pureza do que nunca procriou.
A pureza do que golpeia o peito, e
diz santo, santo, santo,
quando é um diabo, diabo, diabo.
Enfim, a pureza
de quem não chegou a ser suficientemente impuro
para saber o que é a pureza.

Ponto final, data e assinatura.
Assim o deixo escrito.



(Versão minha. Fonte: Poesía cubana del siglo XX; selecção e notas de Jesús J. Barquet e Norberto Codina; prólogo de Jesús J. Barquet; Fondo de Cultura Económica, San Lorenzo (México), 2002, pp. 130-131).