quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Kenneth Rexroth

 Veados



Os veados são gráceis e delicados
e têm olhos doces.
Não magoam ninguém para além de si,
os machos, e só por amor.
Os homens inventaram milhares
de maneiras de os matar.



(Versão minha. Fonte: aqui).

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Jorge Aulicino

 Coloristas



Há nesse bosque de Cézanne
a impressão de que esse bosque não está
nem esteve.
Não porque seja sonho, enredo de sonhos,
mas porque está pintado em parte
numa tela,
em parte no nada e - em grande parte -
no local onde vimos um bosque.



(Versão minha. Fonte: La doble sombra. Poesía argentina contemporánea; selecção de Antonio Tello e José Di Marco; Vaso Roto, Madrid, 2014, p. 47).

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Rafael Felipe Oteriño

 A partir desta idade



A partir desta idade vê-se tudo:
vê-se a margem impetuosa,
vê-se o fulgor das colinas,
vê-se o pátio onde tudo acontece,
vêem-se as portas que ninguém abre,
vêem-se os desertos que ninguém celebra;
vê-se o mar e vê-se a espuma do mar,
vê-se o rio que vem da infância,
vêem-se as nuvens correndo leves mais além,
vê-se a lua e o esplendor da caverna
- o cume como um pensamento inacabado - 
vê-se o centro do mundo sem se mudar de lugar,
vê-se por cima e por baixo, à direita e à esquerda, com os olhos fixos,
e vêem-se nítidos, feitos de espanto e liberdade,
os nossos pés desnudos no ar
sem encontrarem nunca a terra firme que procuram.



(Versão minha. Fonte: Nueva poesía argentina; selecção e introdução de Leopoldo Castilla, Hiperión, Madrid, 1987, p. 63).

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Ilyas Zhansuguirov (1894-1938)

 Nevão



Um nevão maciço tapa-nos com a sua neve.
O frio intenso revela-se bem duro.
Ao rés do vento as ovelhas avançam,
as suas cabeças protegem-se na direção das correntes de ar.
A neve vai aumentando, esconde-se em si mesma
e ressurge incessante.
Apoia-se no teu cajado junto às tuas ovelhas.
Taímas o indigente treme.
Tem uma pedra de afiar atada a uma corda.
O seu avental de feltro reluz enquanto se arrasta.
Entre as costas e o peito abre-se lentamente.
Os joelhos brilham debaixo das calças.
O seu corpo arrefece à medida que se move.
O vento silva, sopra asperamente.
A neve acumula-se congelando-lhe o pescoço.
Pingentes de gelo aparecem-lhe pendurados na barba.
Com o seu gorro de raposo e o sobretudo quente,
Duisek o rico está ao frio na colina
e grita: "Leva para longe esse rebanho das ovelhas!"
Fazendo-se passar por dono de Taímas,
vocifera em altas vozes:
"Que não te aproveite o que roubaste, cão!",
e prossegue, grasnando entre os corvos.



(versão minha. Fonte: Antología de la poesía kazaja contemporánea (Siglos XIX, XX y XXI); selecção de Justo Jorge Padrón; Ediciones Vitruvio, Madrid, 2017, p. 97).

domingo, 12 de dezembro de 2021

Jorge Aulicino

 O muro dos fuzilados



O problema do muro dos fuzilados
é que está em qualquer sítio.
Não se pode dizer: foi aqui,
aqui caiu Pancho, ali González,
mais além, com espuma sangrenta nos lábios,
Enrique gritou "viva a Revolução".
Não se pode dizer esta é a parede,
aqui, estes ladrilhos talvez estejam
salpicados de sangue.
Os fuzilados apostam que não é o momento
de morrer fuzilado.
Um caiu com os olhos abertos,
outro, duro como um tronco:
à força de disparos
só então a história se ilumina.
Só então, por um instante.
Mas esse não é o jogo.
O jogo prossegue, há outros dados,
não revelem a ninguém o muro
dos fuzilados.
Os fuzilados não querem monólitos
nem pedras nem o quadro dos fuzilados.
Os fuzilados queriam que se dissesse "não sei"
se alguém pergunta pelo muro dos fuzilados.
Não sei onde está o muro, não sei, é cedo,
não sei nada de González, ou de Pancho.



(Versão minha. La doble sombra - Poesía argentina contemporánea; selecção de Antonio Tello e José di Marco; Vaso Roto, Madrid, 2014, p. 50).

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Gloria Fuertes

 Porque não me casei (Autobio)



Em 36 tive um noivo que me amava muito,
mas dedicava-se à política,
e entre o poder e a Gloria
escolheu o primeiro.
Depois tive outro,
na outra
banda,
mas mataram-no.
Por isso sou pacifista e
solteira.



(Versão minha. Ellas cuentan la guerra - Las poetas españolas y la guerra civil (Antología 1936-2013); selecção de Reyes Vila-Belda, Ranacimiento, Sevilha, 2021, p. 239).

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Juan Carlos Moisés

 [Quem me viu?]



Quem me viu?
Na zona por onde andei ladraram.
A noite era demasiado negra
para que alguém - fosse quem fosse - pudesse dizer:
- Era ele. Vimos a sua cara.

Mas quem pode acreditar em cães cavalos galinhas pintos.



(Versão minha. Nueva poesía argentina; selecção e introdução de Leopoldo Castilla, Hiperión, Madrid, 1987, p. 101).

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Juan Bonilla

 Os poetas malditos



oh essas raparigas que perdem a cabeça por Sylvia Plath
porque foi capaz de fazer o que elas nunca farão
(não me refiro às metáforas atropeladas que escrevem sobre o medo
de se amarem um pouco a si mesmas
mas sim a suicidarem-se)

e esses rapazes que imitam Bukowski
(não me refiro a escreverem poemas descosidos sobre a sua própria miséria
mas sim a embebedarem-se com a certeza de que um dia
alguém os vai tirar da miséria)

e os Rimbauds de bairro baixo
que já que não podem traficar armas e deixar de escrever poemas
escrevem poemas e masturbam-se sonhando
com um cirurgião do deserto que lhes amputa uma perna

e quantos Lautréamonts de bairro alto
que adorariam ter um assomo de energia
para tirar a seringa do braço
e escrever com o próprio sangue algum verso assassino

oh os Maiakovskis
dando murraças à esquerda e à direita abrindo sobrolhos
e socando bochechas e recebendo em algum momento uma cabeçada,
com os narizes partidos e felizes, erguidos de pé para dizer a revolução

e os ternos tristes jovens que eugenizam, senam, herbertam,
ou fazem tintilar as moedas musicais de Pessoa
e escrevem ironias sentenciosas sem terem ainda perdido nada
e do seu tédio fazem melancolia fugitiva
num mundo de selfies
e estão convencidos de que a comida mais importante do dia
é um livro de poemas

invejo-os a todos por terem 
aquilo que já perdi para sempre:
a cega confiança de que escrever
é um modo de engrandecer a vida

a confiança cega de que viver
não é nada
se depois não nos serve
para cair de bruços
num poema.



(Versão minha; Horizonte de sucesos; Renacimiento, Sevilha, 2021, pp.115-116).