quinta-feira, 22 de abril de 2010

Daniel Bristol

Devolucionista



Dantes eu era um oceano cheio de vida. Podia dar conta
de tudo, pois era com isso que se contava. Alargava-me
por milhas e costumava abarcar toda a terra. Costumava ser tudo
para toda a gente; terás só de acreditar na minha palavra.

Costumava ser um grande lago. Costumava ser o maior de todos.
Era o ventre de onde nascia a lua logo que o sol se punha.
Estava sempre a brilhar, chovesse ou fizesse sol, fosse dia ou noite.
Fui o lugar aonde trouxeste a tua namorada para a pedir em casamento.
Costumavas meditar sobre os teus dias à beira das minhas águas.

Depois transformei-me num pequeno lago perfeito para velejar. Os melhores
amigos passavam muito tempo a pescar e a rir até que o dia
terminava. Eu costumava ser o local de onde assistias ao fogo
de artifício do 4 de Julho. E gelei em Dezembro quando fiquei a saber que
o teu melhor amigo tinha morrido. Costumava até abraçar o chão
onde jaz agora o cão da tua família.

E depois fui um rio, correndo rapidamente, saltando o tempo. Costumava
transformar rochas aguçadas em pedras perfeitas para lançar sobre a água.
Costumava respirar de um modo constante. Costumava seguir o meu próprio
ritmo. Tu costumavas chegar-te a mim apenas para lavares os pés sujos.
Juntos observávamos as estrelas; costumávamos verter a mesma quantidade
de lágrimas. Vi-te florir e crescer; juntos partilhámos os melhores anos.

Mas agora sou um afluente debaixo de uma ponte desconhecida, algures. O tempo
encolheu-me, e aqui estou na minha solidão. Alguns dias são
melhores do que outros; a minha água flui e depois seca. Ter-me-ia
ajudado ter alguma companhia, ter junto de mim a minha amiga.
Mas na verdade não sei quando voltarei a vê-la.



(Versão minha; o original, reproduzido em Best modern voices: words for the new millennium, vol. 1, Wordclay, 2010, p. 5, pode ser lido algures por aqui).

5 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

:-) até os rios têm saudades...

Lp disse...

Não os podemos deixar sozinhos, pelos vistos...

CCF disse...

Li tudo e gostei muito, mas fiquei presa na palavra "devolucionista", a tentar encontrar o seu "rosto".
~CC~

Lp disse...

É um dos "problemas" deste texto. Eu, infelizmente,não encontro outra "solução" a não ser traduzir literalmente "devolutionist", que me parece uma criação do próprio poeta; um neologismo, portanto. Proponho "devolucionista" como um termo que remete para a ideia de "involução" (o contrário de evolução), de regressão ou de "encolhimento", como o poema sugere; mas também me agrada a noção de "devolução" que o "neologismo" português talvez possa conter. Ou talvez me esteja a passar alguma coisa ao lado, não sei. Talvez haja uma opção mais satisfatória... um rosto mais condizente... a porta está, naturalmente, aberta...

CCF disse...

Traduzir é muito difícil, e o teu trabalho é excelente, ainda mais se tratando de poesia! Talvez me tenha detido aí porque eu própria enfrento problemas semelhantes com o Inglês(quanto mais com outras línguas...), há palavras que não consigo traduzir de forma satisfatória e ando a mastigá-las por muito tempo. Fiquemos com o teu rosto: uma ideia de mutação/transformação associada à água (qualquer coisa que muda e ainda assim permanece e tem memória?!).
~CC~